Mágica Acontece

Um experimento audioliterário (use fones para degustar)

Cleiton Lopes
CRÔNICAS
5 min readMar 10, 2017

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Fonte: Unsplash

A música para ele era sua melhor parceira. Para realizar qualquer atividade precisava de uma trilha sonora. Ok Computer do Radiohead servia de inspiração para criações artísticas. Honky Château de Elton John, para arrumar a casa. Who’s Next do The Who, para exercícios físicos (nas poucas vezes que eles aconteciam). Para cozinhar, Abbey Road dos Beatles seguido de Alucinação do Belchior — não sabia ao certo o porquê dessa sequência, mas era assim. E para dias de literatura, Bookends de Simon and Garfunkel.

Nas caminhadas pela cidade a playlist variava bastante. Algumas vezes ouvia um álbum descoberto recentemente. Uma banda nova — para ele — ou um disco novo de algum artista que ele já gostava. Outras, quando queria companhia do acaso, recorria a rádio que seus pais costumavam ouvir, famosa por tocar músicas antigas. Foi justamente esta a responsável por ampliar seu repertório musical e hoje, ao cantarolar algum som que ouviu lá, as pessoas ficarem sem saber de onde isso veio. “Quem com vinte e poucos anos cantarola Fagner por aí?”, pensam os demais.

“Que som combina com esse momento?”, pensaria ele. Fonte: Unsplash

Certa vez, ele saiu de casa para o trabalho mais cedo que de costume. Como o dia estava quente, procurou alguma camisa clara, de preferência branca, para tentar amenizar um pouco o calor, já que não poderia se livrar das calças compridas e do sapato fechado. As primeiras que surgiram no guarda roupa foram as do Joy Division e do Nirvana, mas eram pretas. “Droga.”, pensou ele. Recorreu, então, a uma com um desenho abstrato de alguma marca desconhecida por ele, que tinha ganho de algum parente em seu aniversário, mas nunca usara antes.

Em busca de qualidade na reprodução de músicas na rua, usava um headphone grande, cujo único defeito era ser chamativo demais. Pois, chamar atenção era o que ele menos queria, mas fazia esse “sacrifício” em nome da música. Porém, ultimamente, o calor do dia fazia da busca por excelência sonora um incômodo. A orelha escorria suor e o arco no alto de sua cabeça ficava insuportavelmente quente. Optou, então, por comprar um fone intra auricular, um tipo que ele odiava. Achava o som ruim e ficava sempre caindo de seu ouvido. Mas, por sorte, encontrou um mais interessante que chegava a ser quase tão bom quanto sua primeira escolha. Era uma espécie de protetor auricular capaz de eliminar inteiramente os sons externos.

Geralmente, ele optava por não usar o “poder” total dos fones. Deixando-os um pouco soltos para não se isolar totalmente do mundo externo e evitar atingido por algum carro ou coisa parecida.

Até que, na subida de um morro, na verdade uma rua só um pouco mais inclinada que o normal, ele resolveu experimentar toda a potência da sua última aquisição. Escolheu um álbum recém chegado em sua playlist: Sound & Color, da banda Alabama Shakes para o teste.

Afundou os fones no ouvido. O mundo em sua volta se calou e ele deu o play.

Mágica.

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Ele continuou sua caminhada. Deu mais alguns passos na calçada e precisou parar numa das pontas da faixa de pedestres. O bonequinho do farol estava vermelho indicando que era a vez dos carros. Uns cinco veículos passaram por ele enquanto a música começava. Como a introdução era um som leve e baixo, ele pode ouvir barulho dos carros se misturarem e criar uma melodia única.

A mágica teve início.

Verde. Amarelo. Vermelho. Os carros param e o boneco verde se acende. Todos os pedestres iniciam a travessia. Alguns mais apressados, outros menos. Nesse instante, surge um vento que faz as coisas ficarem ainda mais poéticas. Uma árvore do outro lado da rua solta algumas folhas que dançam pelo ar na frente dele.

Vindo na direção oposta a sua caminhada, uma mulher loira com um vestido longo ri da bagunça que o vento faz em seu cabelo. Enquanto ela prende os fios por detrás de suas orelhas, ele ri da situação. Os dois trocam olhares e um riso. Ele sacode os ombros e ela retribui com o mesmo movimento e ambos seguem seus caminhos.

Do outro lado da rua, um rapaz toca um violino com um chapéu no chão a espera de moedas. O fone faz com que nosso herói não ouça o toque do instrumento, tornando a realidade com ainda mais cara de vídeo clipe. As pessoas seguem subindo e descendo a rua, cada um preocupado com o seu próprio destino.

Um casal se abraça e ri num canto trocando beijos carinhosos. Uma mãe guia o filho pelas ruas de mãos dadas. Um grupo de adolescentes com uniformes escolares riem uns dos outros, enquanto caminham pela rua.

Fonte: Unsplash

Mais uma vez o vento surge. Forma um pequeno redemoinho, levando pedaços de papel e mais alguns lixos que estavam pelo chão a se arriscarem pelo ar.

Ele olha para cima e vê que os ventos são sinais de uma possível chuva. O céu aos poucos vai se tornando cinza e o sol, que a pouco queimava a sua pele, começa a perder as suas forças. “Tem chuva a caminho” pensou ele.

Depois ele passa por uma mulher grávida, vendedores clandestinos de cigarro, um ponto de ônibus lotado e trabalhadores uniformizados carregando uma escada e ferramentas. Um senhor de mais idade e de cabelos inteiramente brancos, passa com um cachorro, que parece ser tão idoso quanto ele.

O vento cessa. As folhas param de cair das árvores. Outra faixa de pedestres. Carros passam, dessa vez mais velozes. Era uma avenida mais movimentada.

Verde. Amarelo. Vermelho. Os carros param. O boneco vermelho se apaga e o verde se ilumina. Os pedestres continua sua sina, cada um com sua rotina particular. A música em seus fones termina, mas ele continua. A vida precisa continuar. A magia chega a seu fim.

Ele então percebe que viveu um instante único e raro. Um momento em que tudo convergiu para uma experiência poética. O cotidiano se tornou música para seus olhos e deu cor para seu dia.

Que venha a próxima faixa.

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Cleiton Lopes
CRÔNICAS

Apenas um rapaz latino americano, querendo aprender de cinema