Minha irmã de quatro patas

Raphael Valenti
CRÔNICAS
Published in
5 min readJun 13, 2018

Minha irmã era diferente de tudo que eu pensava que uma irmã poderia ser. Ela tinha quatro patas, só o primeiro nome — Winnie — e um fraco por doces que confesso, é de família.

Minha irmã não nasceu, ela chegou. Ou melhor, a gente foi buscar. Lá em Mogi da Cruzes. Eu não sabia quem estava mais assustado. Ela, na sua cama no banco de trás do Siena azul da minha mãe. Ou eu, pensando em como ia tomar conta dela. Ela passou a viagem inteira em silêncio, medindo todo mundo no carro: sua mãe, seu pai e seus dois novos irmãos. Agora, bastou chegar em casa pra se soltar. Em poucos segundos, a casa virou de ponta cabeça. Literalmente. Hora era a gente de ponta cabeça para tentar impedi-la de fazer xixi embaixo da cama , hora era a gente virando o móvel da sala de ponta cabeça para limpar a obra de arte mais recente dela: um cocô atrás do som.

A loucura do primeiro dia passou, mas minha irmã ainda tinha vários truques na manga. O primeiro deles? Desaparecer dentro da lava roupa. Como eu não sei, um mágico nunca revela seus segredos. Dias depois, comeu plástico, apesar dos esforços da família em fingir que aquela ração sem gosto era uma delícia. Nessa época, minha irmã dormia no banheiro dos fundos, mas algumas semanas depois a cama já estava mudando de lugar. Primeiro pra cozinha, depois pra sala, depois pra mais dentro da sala, até entrar de vez no quarto da minha mãe. Como um general destemido, ela foi conquistando território. Suas armas eram olhos grandes, uma cara de dó e uma energia incansável. Qual exército resistiria?

Diferente de mim, minha irmã foi educada em casa. Foi lá que ela aprendeu a subir no sofá, sentar e dar a pata. Até mesmo high five entrou na grade curricular. Uma aluna aplicada, ela rapidamente usou as aulas de pulo para invadir nossas camas. Não havia mais nenhum um cômodo na casa que não fosse dela. A invasão estava completa.

Agora, você sabe como cachorros são, né? Quanto menor, mais coragem eles tem. Era assim com minha irmã. Ela latia para labradores, borders, weimaranes, berneses e goldens. E quanto menor o desafiante, menos ela ligava. Razão de grande raiva dos salsichinhas e schnauzers do Itaim, que faziam de tudo pra provoca-la. Mas minha irmã era como um bom zagueiro na Libertadores. Não caia em provocações.

Ela adorava correr e isso não aprendeu comigo, veio de fábrica. E como corria! Por praias, jardins e parques, dando um 7 x 1 na gente antes mesmo do 7 x 1 existir. “Como ela corre!” as pessoas diziam, enquanto ela, parada e com a língua de fora, encarava de volta sem entender nada.

Como toda irmã deve ser, ela era muito companheira. Um dia, depois de uma grande desilusão amorosa, fiquei horas chorando no quarto. O barulho do fucinho dela na porta me trouxe de volta a realidade. Quando girei a maçaneta, ela entrou devagar, pulou na cama e deitou no meu colo, ficando lá até eu conseguir parar de chorar, apenas algumas horas depois. Essa não era sua única grande qualidade. Ela tinha um faro incrível. O máximo que eu conseguir farejar era o bolo da minha mãe, mas ela ia direto na fonte. Em uma viagem à praia, fui leva-la para passear enquanto minha mãe andava por aí. Minha irmã foi farejando, farejando, até dar de cara com minha mãe. Infelizmente, sem bolo.

Duvido que minha irmã fosse muito de música, muito menos de Carnaval. Logo ela, tão avessa ao barulho de festas e fogos. Mas se por acaso ela tinha uma música favorita, só poderia ser Manda Ver da Banda Eva. Ou pelo menos, a parte que diz “Vem, estou esperando você, pra gente fazer um auê”. Era abrir a porta pra minha irmã aparecer de onde quer que ela estivesse, pulando e fazendo festa. Juro, você não seria melhor recebido em um hotel 6 estrelas no Taiti. Os recepcionistas desses hotéis são pagos pra isso. Ela, não, apesar de sempre ficar esperando um biscoito como recompensa.

Ela foi crescendo e ficando adulta, mas isso não quer dizer que ela parou de aprontar. De jeito nenhum! Ela comia as batatas e as cenouras da casa e revirava o lixo, truque que aprendeu mais velha, rindo na cara do ditado não se ensina truque novo a um cachorro velho. Minha irmã, como muita gente, não gostava de remédios. Na tentativa de engana-la, minha mãe enrolava a pílula em um queijo ou um presunto. Minha irmã comia tudo em volta, menos a pílula. Minha mãe passou a esconder a pílula numa colher de requeijão, que ela lambia inteira, sem suspeitar que tinha sido enganada para o próprio bem.

A idade chega para todos e com a minha irmã não foi diferente. Quando ficou mais velha, parou de correr e passou a cultivar um hábito que tinha desde criança: passear de carro. Sob o seu olhar atento do banco do passageiro, fui deixado em tantos lugares: faculdade, clube, vestibulares, entrevistas, encontros, aniversários, cinemas. Quando eu virava pra dar tchau, minha irmã estava sempre lá, atenta, me olhando. Sorrindo.

Depois de 12 anos, do mesmo jeito que tinha chegado, minha irmã se foi de repente. Dessa vez, a casa ficou em silêncio. Nada foi revirado. A máquina de lavar não foi invadida. As batatas e cenouras continuaram no lugar. O pote de requeijão ficou fechado. Minha irmã se foi, calma e serena. Educada ao extremo, fez questão de não ir embora na nossa frente, como que para amenizar um pouco a dor. Foi de surpresa, quando o pior já parecia ter passado

Certa vez, li sobre uma família que chorava a morte de sua cachorra. O pai, aos prantos, questionou porque os cachorros morriam tão cedo, enquanto a gente ficava por aqui. O filho, de uns 5 anos, respondeu que era porque os cachorros aprendiam a amar mais rápido do que a gente. Enquanto eles precisavam de poucos anos, a gente demorava uma vida inteira.

Minha irmã aprendeu rápido e nesses 12 anos, amou sua família com todas as forças e energias. E por mais que eu tenha certeza de que ela brincou, correu, lambeu, comeu, pulou, entrou em máquinas de lavar, roubou batatas, farejou, deu high five e foi muito feliz nesse tempo todo, parte de mim gostaria que ela tivesse sido uma aluna um pouco pior e passado mais um tempinho com a gente. Nem que só mais um dia, mais uma hora ou mais um high five.

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