Morrer custa caro

Leandro Marçal
CRÔNICAS
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3 min readMay 10, 2018
Vão-se os entes, ficam os boletos. Foto: Pensamento Líquido.

Na despedida da tia Carmen, descobri que os cemitérios não são tão belos quanto Hollywood tenta nos mostrar. Nada de gramados bonitos, campas brilhosas e cruzes brancas. Minha primeira experiência com a despedida final foi em uma tarde de calor insuportável. Vi coveiros agilizando o trabalho, um monte de papéis do convênio, o cortejo com a trilha de uma música gospel e pás de terra sobre um amontoado de madeira. Viramos sobremesa de vermes sem o glamour estético dos filmes.

Depois daquele dia, contei à minha família que preferia ser cremado. No almoço de domingo, alguém mais velho me avisou que eu era muito novo para pensar na morte, tinha que focar em estudar, me formar e conseguir um bom emprego.

Estudei, me formei, consegui e perdi bons e maus empregos com o passar do tempo, pensando na vida e na morte por muitos dias depois daqueles dias. Em um deles, fui com minha mãe visitar o túmulo da tia Carmen. Ou melhor, fomos ao que um dia já foi o túmulo da tia Carmen.

Como um feijão no pote de sorvete, ela não estava mais lá. Ou, pelo menos, sua foto e nome completo não pertenciam mais àquela campa. O convênio nos alertou que a falta do pagamento de uma taxa não sei do quê, três anos depois da morte da antiga parente, fez seus ossos serem retirados dali e jogados em outro canto. Ali, se misturaram aos restos de braços e pernas de outros falecidos, a presença das lágrimas dos familiares.

O pagamento do convênio que vai tomar conta de todo o cerimonial de despedida chega religiosamente às casas dos vivos, que mesmo assim coçam o bolso por taxas de velórios, caixões e lápides. Depois de um tempo, a senha do cartão de débito evita que a campa não seja revendida. E nem as muitas orações são suficientes para proteger os falecidos dos roubos de produtos valiosos em sua homenagem.

Não bastassem baratas e a podridão debaixo da terra comendo cérebros e fígados, ainda há o risco de necrófilos violarem corpos indefesos e fedidos.

Comentei com a minha mãe dos bons momentos da tia Carmen em vida, os quais nunca esqueceremos. Seu sorriso nos álbuns de família, as histórias de como se livrou dos porões da ditadura militar, o casamento, a viuvez e a compra da primeira dentadura valiam mais que um monte de concreto e madeira.

Bem que ela concordou. E passou a atrasar os boletos do convênio da morte. A vida anda tão cara, por que gastar tanto dinheiro com o Além?

Quando a visito, percebo que há mais vasos de flores ao lado da TV e no móvel das fotos de família na sala. Há um, vazio e colorido, ao lado da foto da tia Carmen.

Talvez saia mais barato morar em um deles depois de nos despedirmos daqui. Em cinzas, poderemos acompanhar pessoas queridas quando estas forem ao banco, à padaria, ou estiverem vendo um filme no streaming, se esta ainda for uma tecnologia usada no futuro.

Pedi para ser jogado no rio que corta minha cidade. Com alegria: não quero choro nesse dia e até tolero selfies. Em casa, salvei um site para compras de vasos nos favoritos. E quando o boleto mensal do convênio chega, rasgo e coloco na lata de lixo reciclável.

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Leandro Marçal
CRÔNICAS

Um escritor careca e ansioso. Autor de “De Letra: o futebol é só um detalhe” e “No caminho do nada”. Cronista no Tirei da Gaveta (www.tireidagaveta.com.br).