No mundo de pó

Ou: em terra de dedos indicadores, quem tem duas mãos é réu

Dedo de prosa e poesia
CRÔNICAS
5 min readNov 8, 2017

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Vivia de pesadelos. Ou os pesadelos faziam-na ser.

Não entendia outra vida senão aquela de pisar em solo bambo, dormir em estado de alerta, acordar em um lugar inóspito, muitas vezes sozinha. Ou acompanhada de pessoas que só ampliavam sua solidão. Era como um looping de maus sonhos, ou de má realidade. Para ela, a única existente.

Vivia há anos assim e ainda leva sustinhos com o corpo trêmulo quando o despertador toca em sua cabeça: é hora de fazer alguma coisa. Hora de ser útil. E ela, então, começa a se mover de um lado a outro, sem entender muito bem por que faz aquilo, mas é tudo automático, ter de seguir em frente.

É na frente da vida que se encontra o motivo de ser vida em espera. Assim se espera.

Talvez a morte? Será a morte o prêmio da vida? Finalmente descobrir o que tanta caminhada escondeu no horizonte? Às vezes, ela pensa sobre isso, mas bem secretamente, em silêncio de queda para dentro. Mas balança a cabeça, não dá para indagar coisas desse tipo se se quer ser útil. Não é para dentro, é para frente, deveria se lembrar.

Siga em frente! Siga em frente! Seja útil. Neste mundo de pesadelos, não há tempo para ser. Apenas ser, sem complementos e continuações. Afinal, que desperdício seria apenas ser, não é mesmo?

Nasce-se para pagar a estadia futura em terra que tem fome, com pessoas que são seca. Seca, união de rachaduras e sede. Um mundo em pó.

Está se sentindo perdido? Pois não espere explicações para desafios soltos. Você tem de entender que está acordado em uma realidade muito cheia. Claro que existem respostas possíveis, mas não perca muito tempo com isso. Apenas mova-se para frente. Não nascemos para ficar parados.

Bem, olhemos para a menina que vive nesse mundo pesado.

Mal-estar, já é noite, uma sensação de falta, de medo. Seu corpo de animal absorveu toda a atmosfera daquele dia: vivera um pesadelo novo, estava em um Tribunal — todos ali contavam apenas com um grande dedo indicador e apontavam-na, apontavam-na. Diziam coisas sobre sua aparência acabada e distraída, suas roupas cheias de pó, os olhos tão sem brilho. Os pensamentos desanimados. Ora! Quem ela pensava que era para ter ideias absurdas como aquelas de querer voltar, de querer ser alegre, de querer parar, sentar-se. Apesar ser. Ora!

Por muito tempo do dia, tentou argumentar. O jurado formado por um grupo de homens carrancudos, brancos, muito brancos, com grossas sobrancelhas em posição de superioridade encaravam-na. Todos de braços cruzados aos argumentos de menina, se mexiam apenas quando queriam apontar seus grandes indicadores: por que não fez dessa maneira? Por que não pensou assim e assado? Por que não escolheu se arrumar mais para chegar aqui? Por que você acha que é vítima se foi você quem escolheu tudo o que fez até hoje, se foi você quem escolheu vir a este Tribunal?

Ela se sentia cansada, cada vez mais cansada e culpada. Olhava para suas mãozinhas e via dez dedos magros, unhas roídas. De nada adiantava ter duas mãos e todo o sentimento do mundo. De nada adiantaria. Em terra de dedos indicadores, quem tem duas mãos é réu.

Depois de horas, talvez dias inteiros, talvez a Terra tenha dado voltas e voltas em torno de si, bem, como saber? Depois de algum tempo indeterminado, percebeu que nada justificaria suas falhas. Ela falhara, deveria aceitar. O que eles dizem está certo e você está errada. Entenda isso. E siga em frente.

Foi deixando com que apontassem para seus erros. Estava murcha, ainda mais magra. Foi ficando pequena, minúscula, ou a grande cadeira do Tribunal havia crescido, assim como o bravo juiz e os homens de dedos em riste que chegariam ao céu. Tocariam a Deus até, quem sabe?

De repente, se lembrou do dia anterior. Lamentou pela menina que fora ontem, que tinha acreditado com fé que o que passou havia sido difícil… Pois pouco sabia que ser jogada às cobras pode ser ainda melhor e menos dolorido do que enfrentar grandes dedos impositivos. Aliás, que coisa curiosa, as duas coisas chegam a ser parecidas. Seriam aqueles dedos as cobras de outrora?

Então, começou a imaginar (coisa, é claro, muito proibida). Imaginou o movimento que as cobras faziam em direção dela. Ela: alguém exposto, ferida aberta para ser abocanhada. Como foi que conseguiu escapar dos répteis no dia anterior? Não se lembra, talvez por que aceitou de que seria assim, uma menina envenenada. Talvez entregara-se para o ninho, tornara-se ovo. Talvez ainda fosse cobra e começaria a trocar de pele logo ali, na frente de tantos homens sérios. Talvez trocasse de pele e adquirisse a forma de seus algozes. Seria cobra, seria homem de um dedo só.

Por fim, condenaram-na. Permaneceria pequena, não cresceria. Seria obrigada a repetir o que estava fazendo e pensando por muito tempo. E deveria ser feliz, deixar maus pensamentos de lado. Em sua sentença, cada um dos magistrados escreveu um ponto a ser seguido sem perda de tempo. Quando entregaram o papel de alforria, pode ler:

Levante mais cedo;
Durma mais tarde;
Tente crescer, menina, você é pequena demais;
Pense menos sobre o que receberá, o importante é correr atrás;
Coma menos, mas dê uma encorpada, menina, você é pequena demais; Aprenda a lidar com as palavras, mas não pense que poderá falar tudo o que quiser;
Lembre-se de que é uma grande sortuda por encontrar jurado tão bondoso;
Agradeça por não ter de ficar presa, mas tenha em mente que a liberdade também aprisiona;
Seja menina, mas nem tanto, menina, você é pequena demais;
Cresça, mas nós te condenamos a ser sempre pequena;
Saiba ler o mundo, interprete melhor as pessoas, somente assim poderá acordar em um pesadelo mais leve, contudo não se esqueça de que nosso mundo é pó.

Abraçou a sentença, caiu na cama. Encerrou os olhos pela metade, cortina de fumaça. O coração aos pulos, estado de alerta. Amanhã existe, há de se seguir em frente, amém.

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Dedo de prosa e poesia
CRÔNICAS

Crônicas, contos, resenhas e rabiscos. Por Ana Lis Soares.