O demônio do espelho #1

Pedro Emanuel Maia
CRÔNICAS
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5 min readApr 11, 2018

Já passava das onze quando cheguei em casa. Estava nervoso, ansioso para conversar com ele. No ônibus, já havia listado mentalmente todos os sentimentos, medos e vontades que tinha vivido desde a última vez que nos falamos, pela manhã. Apoiei as chaves e a mochila de forma desajeitada na mesa da sala e corri para o quarto. Acendi as luzes e o vi, no lugar de sempre, como de costume. Seus olhos escuros e profundos me encaravam, semicerrados, como se já esperassem que eu estivesse do jeito que estava.

Ou! — disse. — Como tá?

Ótimo — respondi, com um sorriso debochado que transparecia a mentira em minha voz.

Sentei na cama, de costas para o espelho e, enquanto descalçava os sapatos, podia sentir seus olhos de julgamento e piedade queimando-me a nuca. Nenhum de nós dois disse nada por alguns segundos longos demais, até que ele quebrou o silêncio.

Deu errado? Ele terminou com você, não foi?

Não — devolvi, sem nenhum tom de positividade na voz.

— ‎Então o que houve?

— ‎Nada, está tudo bem entre a gente, eu acho. A conversa até que foi boa.

Silêncio.

— ‎Você tá achando que gosta mais dele do que ele de você, né?

Suspirei. Nada me deixa com mais raiva do que minha incapacidade de esconder meus sentimentos, principalmente de Kiron.

Finalmente me viro e encaro-o no espelho exageradamente largo que cobre meu armário de cima a baixo. Um desavisado diria que somos a cara um do outro, mas nós dois sabemos que não. Suas pálpebras são mais caídas e seus olhos mais inchados, graças às lágrimas. Seu sorriso — quando aparece — também é bem mais maroto: esconde todos os segredos que deixo com ele quando saio de casa para encarar o convívio em sociedade.

O grande diferencial e charme, contudo, recaem sobre dois detalhes. Pequenos e pontudos, sobre a cabeça de Kiron, imagem e semelhança de mim, descansam dois chifres de um tom marrom acobreado. Sempre achei curioso, no mínimo, que o lado obscuro de mim — que habita meus reflexos nos espelhos, atende por um codinome grego e ouve minhas lamúrias quase que diariamente — tenha um par de chifres demoníacos reluzindo logo acima da testa.

Kiron parecia saber que, por uma fração de segundo, eu estava admirando sua beleza obscura. É algo que faço com frequência. Logo me interrompeu.

Fala comigo, homem. O que você tá sentindo?

— ‎Eu tô inseguro, porra. É óbvio que eu tô inseguro. Você sabe que essa é a primeira vez que eu gosto de alguém de verdade por alguém desde…

— ‎Desde o embuste.

— ‎É, desde o embuste — repito sorrindo. Adoro o fato de que até meu demônio no espelho odeia meu ex-noivo.

Você tem certeza que gosta desse garoto? Que não é mais um dos outros?

Kiron se joga na cama em seu quarto-reflexo e faço o mesmo no meu quarto-realidade.

Não sei. Acho que gosto.

— ‎E como você sabe?

Porque tá doendo — respondo rapidamente, como se já tivesse pensado na resposta a essa pergunta inúmeras vezes ao longo daqueles últimos dias.

Mais uma vez, ficamos em silêncio. Kiron sabe que é verdade. Cada dor que sinto na vida se acumula em seu peito e faz com que se torne mais forte — ao passo que me deixa mais fraco. Depois de mim, é ele quem mais entende como funciona minha cabeça turbulenta.

Eu admiro seu drama, sabia? Me dá orgulho. Às vezes eu não sei se a alma lamuriante que habita reflexos sou eu ou se é você.

Não é só isso, babaca — respondo. É a primeira vez no dia que rio com leveza. — Eu sei que gosto dele por todos aqueles motivos clichês. O sorriso dele me deixa bambo, a gente pode passar horas a fio falando sobre nada sem cansar e quando ele chega… Sei lá, revira meu estômago.

“Sei lá, revira meu estômago” — repete Kiron fazendo sua voz aguda carregada de escárnio. — Ah! Quanta frescura, minha deusa, que garoto exagerado.

Encaro o teto lembrando das palavras ambíguas que Fred me disse mais cedo durante o jantar e sinto aquele aperto logo abaixo do diafragma. Percebo que o brilho escuro de Kiron ficar mais forte conforme minhas entranhas se contorcem.

Eu não quero passar por isso de novo. Eu tô com medo.

De que?

De me apaixonar e terminar sozinho.

Ora, mas é exatamente isso que vai acontecer.

É?- pergunto, chateado. Sei que Kiron não é o demônio mais otimista do mundo, mas no geral ele consegue colocar as coisas em perspectivas mais suaves.

É claro que é. Em um ano, dez, em 60 anos, quando ele morrer de velhice. Ou em quinze minutos, se ele atravessar a rua sem olhar e for pego em cheio por um ônibus em alta velocidade.

Mais uma vez, silêncio.

Mesmo que ele te ame loucamente, mais cedo ou mais tarde, vai acabar. Mais cedo, muito provavelmente. A vida de vocês, humanos, é bastante curtinha.

Me pego pensando rapidamente se a vida de Kiron não está diretamente atrelada à minha, mas volto minha mente ao assunto mais importante no momento.

Então eu tô entrando de cabeça num sentimento que inevitavelmente vai deixar de existir quando um de nós morrer?

Na verdade é bem provável que deixe de existir antes disso. Tão curto quanto a vida de vocês é o tempo que conseguem manter seu amor parado num mesmo lugar.

Não consigo ter certeza se estou de frente a um sofredor pessimista ou a um sábio realista. Talvez ambos. De qualquer forma, admiro a clareza demoníaca refletida naquele rosto parecido com o meu.

Então você quer que eu saia dessa por isso? Porque é perecível?

Tira essa culpa de mim, quem cogitou isso foi você — responde, tranquilo, enquanto cutuca uma de suas unhas quebradas com o reflexo de um palito que deixei sobre a cômoda.

O que você acha que eu devo fazer? — pergunto por perguntar. No fundo, sei que Kiron nunca me dá direcionamentos concretos, maldito demônio metido a psicanalista.

— ‎Deixa rolar. Se você não morreu de amor até agora, não vai ser hoje que vai morrer.

Sento na cama e olho aquele rosto cansado, porém divertido, que me encara de volta.

Você gosta da minha miséria, né, cara?

Eu sou a sua miséria, humano.

E ainda assim, a gente se dá tão bem.

Apoio o palito de volta na cômoda e saio em direção a cozinha. No caminho, cruzo com um vaso de planta metalizado horroroso que mantenho no corredor. Sobre o cromado falso vejo, de relance, o rosto de Kiron pela última vez naquele dia. Posso sentir que sua escuridão já está um pouco mais fraca. Não sei quando vou voltar a vê-lo: parte de mim quer que não seja logo, outra parte sabe que será.

Ouço um resquício de sua risada sarcástica e então, o silêncio. Estou sozinho novamente. No espelho da sala, vejo apenas meu rosto, a barba por fazer. Dou o segundo sorriso do dia e tenho a impressão de que o reflexo sorriu um pouco mais. De uma forma ou de outra, sei que ele continua ali. Que alívio.

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Pedro Emanuel Maia
CRÔNICAS

Publicitário, 27. Escrevo quando sofro, quando amo, quando choro e quando rio. Tem dias que faço os quatro, e aí escrevo também.