O dilema da cereja
Minha alimentação era saudável — e saborosa — quando namorava uma nutricionista. Nunca entendi bem a diferença entre calorias e colesterol. Para mim, vitaminas eram primas das proteínas e carboidratos ficavam no motor de carros. Sem eles, ficaria parado num acostamento, esperando ajuda. Foram meses de aprendizado.
Nos raros dias de folga, ela inventava pratos mirabolantes. Eu ia ao mercado com um papel na mão e seguia as especificações detalhadas para não colocar ingredientes errados dentro das sacolas.
Num ainda mais raro feriado de folga, empurrava o carrinho pelo corredor vazio, com a dona da minha dieta à frente. Naquela sexta-feira, a responsabilidade pelo bolo de aniversário estava por conta de quem me explicava os benefícios das fritadeiras elétricas. E só depois de alguns passos ela percebeu minha incredulidade com uma lata na mão.
- Olha aqui, cerejas em calda. Vamos levar?
- Não, isso é uma farsa. Tudo um bando de chuchu disfarçado.
- Quê?
- É sério! Não existe cereja sem caroço. Eles cozinham o chuchu, tiram umas bolinhas e dão banho em calda de groselha. A gente briga pra comer chuchu colorido em cima dos bolos, não é cereja.
Fiquei menos traumatizado ao descobrir a verdade sobre Papai Noel. Não fosse ela ter me apressado, passaria horas refletindo sobre cerejas, chuchus e e falsidades. As festas de infância na casa dos primos, a cereja roubada com chantilly na ponta. O assalto à geladeira de madrugada, pensando que “é só uma, ninguém vai perceber” e a lata de volta na mesma posição. Pura ilusão.
Dali em diante, tudo mudou. Não queria mais saber de comidas saudáveis, dava preferência aos lanches e frituras com muito óleo. De repente, passei a suspeitar de sua preocupação com saladas, sucos, frutas e lanchinhos entre as refeições. Saímos num sábado e ela usou o vestido vermelho que a dei de presente. Quando a mirava, a enganação das cerejas vinha à mente: elas eram chuchus disfarçados.
Se são capazes de aplicar o golpe da falsa cereja, não duvido de mais nada. Todas as brigas familiares e desentendimentos entre casais passaram a me fazer sentido quando percebi que brigar por cerejas não fazia sentido.
Nossas conversas passaram a ser mais secas, já não havia a mesma cumplicidade de antes. Meu desleixo com a dieta se refletiu na relação. A desconfiança mútua e as brigas desnecessárias só aumentaram. Terminamos, sem nunca mais manter contato.
Desconfiava que ela não fosse bem aquela cereja sem caroço que me encantou quando nos conhecemos. Quando descobri que elas sequer existem, fiquei desnorteado. Ela também pode ter me visto que eu não passava de um chuchu banhado em caldo de groselha. Devem ter faltado especificações em nossas latas.