O general de pantufas

Leandro Marçal
CRÔNICAS
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3 min readJun 7, 2018
A caricatura fardada. Foto: Blog do Mario Lobato.

Sempre há um vizinho folclórico. Com insanidade acima dos limites, mais excêntrico que a média. No meu quarteirão, o general cumpre esse papel.

É quase obrigação bater continência, seguida de um “bom dia, general”, respondido com um olhar superior de aprovação. Nunca se ouviu falar de grandes realizações em seus tempos de caserna, mas todo mundo já o viu andando fardado, com umas medalhas no peito, tomando conta da rua. Nos últimos tempos, os cumprimentos são ouvidos de dentro do quintal, olhando firme na direção de quem ousa passar por seu território.

Ao que parece, a esposa não o leva muito a sério. Ela grita e fingimos olhar para o outro lado. Ninguém quer ver o general constrangido. O papo no bar é de que ele não anda muito bem da cabeça já de alguns anos. Depois que os filhos foram morar longe, nunca mais foi o mesmo. De vez em quando, consigo vê-lo por cima do muro, olhando para a rua, esbravejando.

Quando mais novo, tinha medo de jogar futebol perto do portão. Não ousava falar palavrões na calçada. O general é disciplinador e impunha muito respeito aos mais antigos. Falava em valores, moral e bons costumes. Gritava quando necessário. Hoje, pouco se ouve a voz rouca, batendo no peito que nada é mais como antigamente. Pelo portão gradeado, dá até para enxergar sua sombra diante do computador, com a xícara de chá ao lado, olhando por cima dos óculos.

É que ele descobriu as redes sociais. Sua esposa me contou outro dia, na fila do supermercado. Era uma fila daquelas. E o general se recusa a perder tempo nesses lugares, pois já fez muito pelo país. Ela carregava um novo par de pantufas e um pijama listrado, doces — muitos doces — , enlatados, congelados. O general reclamaria da desorganização do carrinho, se ali estivesse.

— Não viu que ele faz um sucesso enorme nas redes sociais? Ai, menino, eu tenho que avisar da comida pronta para ele sair da frente da tela. Precisa ver. Comenta tudo, tem até uns mais jovenzinhos pedindo opinião. Meu velho tá virando uma celebridade da internet, acredita? Nessa crise, então, não para de teclar. Fala em revolução, conclama a juventude e tudo mais. Agora no frio, ele deu pra fazer vídeos. Tira o mofo da farda velha e fala por horas. Meu velho tá meio gagá…

Naquela noite, posicionei um banquinho do lado de cá do muro. Via a janela de onde o general enxerga a rua, com o notebook sobre a mesa. Se na infância usávamos binóculos para rir da sua reação aos trotes de telefones públicos, dessa vez passei frio, escondido, para registrar os bastidores de sua atuação digital.

Notei as pantufas azuis encostadas no chão azulejado. A esposa fechou o último botão para esconder o pijama listrado sob a farda. Ele colocou a boina. O flash do meu celular disparou e precisei me abaixar rapidamente para não ser visto. Quando me levantei, lentamente, a cortina já estava fechada. Ainda não o encontramos nas redes sociais, porque mal sabemos seu nome, só a patente como apelido na vizinhança.

O general é um sujeito engraçado. Tomara que não morra tão cedo. A rua perderia a graça.

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Leandro Marçal
CRÔNICAS

Um escritor careca e ansioso. Autor de “De Letra: o futebol é só um detalhe” e “No caminho do nada”. Cronista no Tirei da Gaveta (www.tireidagaveta.com.br).