O longo caminho rumo à transação aprovada

Leandro Marçal
CRÔNICAS
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4 min readAug 10, 2017
Chega o fim do mundo, mas não chega a mensagem de confirmação de pagamento. Foto: LinxShare.

São poucos segundos entre apertar o botão verde e a mensagem tão esperada brilhar na tela da maquininha de “débito ou crédito?”. Transação aprovada é a combinação de palavras mágicas, já há algum tempo tomando o lugar de por favor e obrigado.

Aqui, do caixa do restaurante, sou capaz de observar as diversas reações de cada cliente que tira o cartão da carteira. Quanto mais dourado e brilhante, maior o orgulho e soberba de mostrar um costume mais civilizado do que o uso arcaico das cédulas com fotos de animais.

Há quem faça questão de recusar sua via de forma esnobe e soberba, como se isso fosse um ingresso para o clube dos novos ricos e não uma banalidade qualquer.

Mas é curioso ver a gota de suor solitária escorrendo sobre as testas nervosas quando o 3G dá uma rateada rotineira, com o sinal da internet girando, girando, girando e demorando para me avisar se deu tudo certo ou não na hora de descontar do freguês seu consumo de minutos atrás.

Olhos arregalados, pupilas dilatadas, mãos tremendo e pernas se balançando. Ninguém quer passar por um constrangimento desses. Piii, deu certo, ufa, respiramos. Acontece.

Também acontece da transação ser recusada por senha incorreta, falta de saldo ou alguma má fé que não tenho como prever. É aí que surgem as famigeradas explicações desnecessárias aos desconhecidos: mas ele sempre funciona, eu desbloqueei essa semana, olha aqui meu saldo na conta, o que será que aconteceu, se eu errar novamente corro o risco de ter minha conta bloqueada e a Polícia Federal entrar aqui depois de um salto no helicóptero com câmeras me filmando para um programa policial vespertino?

Peço calma, vamos tentar novamente, enquanto ouço se não pode ser algum problema na maquininha inocente e imparcial. Peço calma, vamos tentar novamente.

A moça tímida que pediu um carregador para o celular quase não supera a timidez: depois de tudo ter dado certo com seu pagamento, por pouco não bateu todos os recordes de Usain Bolt ao ir embora correndo antes que eu tivesse tempo de perguntar se queria sua via.

Essas maquininhas de “débito ou crédito?” renderiam uns bons tratados sociológicos sobre nossa estranha mania de vestirmos máscaras sociais. Precisamos mostrar que está tudo bem e nosso saldo não é negativo, mesmo quando ninguém se importa com isso.

Num domingo desses, abria o portão revoltado por ter de sair de casa naquele clima meio noir. Era madrugada quando o celular tocou e a voz do outro lado da linha estava desesperada por uma ajuda diante da vergonha em um lugar improvável.

Um amigo começou a noite mais feliz com a autoestima depois de convencer a moça a ir ao motel para a tradicional, humana e necessária troca de fluidos. Seu cartão estava no limite. Num raro arroubo progressista de quem é machista boa parte do tempo, o acordo foi que dividissem a conta do prazer. Efeitos da crise.

Ele só não contava que a bandeira do cartão dela não era aceita por ali. Meu amigo é muito religioso para ouvir a sedução do cheque especial, esse demônio sussurrando em nossos ouvidos contra a educação financeira angelical do outro lado.

Sonolento, cheguei ao local menos constrangido do que eles. A moça mal saiu do carro dele e se escondia enquanto fiz um empréstimo de módicos 50 reais que lhe faltaram. Mas eu conheço a moça e não me importo com isso, pensei.

Não sabia se devia ficar mais inconformado com o sorriso irônico da mulher no caixa, as sobrancelhas arqueadas dos seguranças impedindo meu amigo de ir embora por quase uma hora, ou com a cara de felicidade pós-coito dos pombinhos em meio ao meu sono interrompido.

Além de tomar banho, também tenho o costume ansioso de conferir meu saldo bancário todos os dias. Não que eu coloque o dinheiro como a coisa mais importante da vida, estou bem longe disso. Mas o que é meu é meu. Banco nenhum vai levar se não for de direito.

Ouvi o conselho de uma amiga atriz e aproveitei meu vício em falar e gesticular. Faço uso dessa mania estranha para que os segundos de espera não se tornem um constrangimento desnecessário para os próximos clientes.

Essas atuações ganham ares de papo de elevador, mas até que são convincentes. Evita infartos diante de mim enquanto a maquininha de “débito ou crédito?” não dá sua resposta. De qualquer jeito, há cobranças, sejam elas simpáticas ou indiferentes.

Num hipotético retorno de um Salvador à Terra, sua angústia suprema não seria numa montanha, mas suaria sangue com os olhos vidrados num aparelho estranho e moderno, tentando lembrar quanto dinheiro tinha na conta e se condenando por não ter visto seu extrato antes de pedir essa comida tão cara e gostosa.

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Leandro Marçal
CRÔNICAS

Um escritor careca e ansioso. Autor de “De Letra: o futebol é só um detalhe” e “No caminho do nada”. Cronista no Tirei da Gaveta (www.tireidagaveta.com.br).