O Pecado De Eva — Arquétipo De Aurora.

Jeff Venancius
CRÔNICAS
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7 min readJul 17, 2017

Se tudo escrevo no passado, é por tentar esquecer. Das vezes em que não pude ser vista como ser humano, das vezes em que tomaram decisões por mim. Das vezes em que fiquei muda, quando descobri que minhas próprias palavras podiam me ferir.

Meu namorado é muito bom comigo. Sim, ele pode ser um pouco agressivo às vezes, mas é só o jeito dele. Eu sei que se eu estiver doente ele vai deixar de sair para cuidar de mim, a não ser que seja a final das libertadores, que ele faz questão de ver no bar com os amigos, mas não o culpo. Eu que sou boba de não me cuidar.

Meu trabalho também é muito bom. Meu chefe é muito bom comigo, às vezes me traz doces e outras guloseimas. Às vezes me olha; quando não estou olhando, as meninas disseram.

As meninas são todas tão bonitas, sinto inveja. Se eu fosse mais bonita, será que ele diria que me ama?

A mulher do meu chefe não gosta de mim. Descobri isso hoje, mas sempre suspeitei, ela cumprimentava todas as meninas e fingia que não me via. Tentei acreditar que era por ser tão tímida, mas não era.

Quando voltei do banheiro, essa tarde, a vi cuspindo dentro da minha bolsa. Não foi a primeira vez, porque volta e meia a bolsa estava molhada, meus documentos cheios de catarro. Passei a levar meus documentos sempre comigo, enchi a bolsa com lenços de papel.

Eu sei que um trabalho tão bom quanto este não se acha em qualquer lugar.

Contei ao meu namorado e ele me bateu, disse que se ela fazia isso, era porque eu me oferecia demais ao marido dela e que por ser uma oferecida eu merecia um soco na cara.

No outro dia eu disse a todos que cai da escada, ninguém duvidou. Acho que porque sou assim, tão estabanada. Fiquei aliviada.

Meu namorado não me namora, disse rindo que fico muito feia com esse roxo na cara. Olhei no espelho e, realmente, eu estava um horror. A noite ele saiu com os amigos e eu fiquei vendo a novela. Acho que foi bom, o capitulo foi ótimo e com ele aqui eu não poderia ter assistido. Depois do jantar dormi sozinha até que de madrugada ele chegou bêbado, abaixou minhas calças e me fodeu. Eu não disse nada, acho que não importava pra ele se eu estava acordada ou não.

***

Amanhã será meu aniversario. Crio mil expectativas para o único dia do ano em que sou realmente especial e única. O dia em que todos me amam por ter nascido e que desejam que eu viva muitos anos mais, pois minha existência alegra.

Penso em passar meu aniversario com a minha família. Faz tanto tempo que não vejo meus pais, faz tanto tempo que não vejo meu irmãozinho. Deve estar um homem feito, e pensar que o carreguei no colo, e pensar que um dia uma vidinha tão pequenina esteve em minhas frágeis mãos de criança.

Hoje minhas mãos são ásperas, como as da minha mãe. É engraçado como os homens se orgulham tanto dos calos, nós nem falamos nada sobre. É só a vida gasta, mais nada.

Amanhã é meu aniversario, quero me olhar no espelho e me ver bonita; acho que mereço gostar de mim, talvez usar aqueles brincos que nunca uso, por ter assim, tanto apreço por eles que não quero gasta-los. Amanhã é meu dia; é especial, então eu posso tirar licença para usá-los sem me sentir assim, como uma pecadora.

Hoje é meu aniversario, acordei bem cedo e me arrumei por horas, sei que poderia ter dormido até mais tarde, mas no meu dia, eu quero ser uma princesa. Ah, espero que meu príncipe sorria ao me ver, mas por enquanto ele dorme.

Com muito cuidado, tiro a sobrancelha, contorno os olhos, faço minha mágica. Eles ficam tão grandes, tão cheios de vida e, ai, que vergonha… Sensuais. Vergonha boa, de ser bonita.

Faço minha mágica no rosto, na boca, minha boca fica tão vermelha, parece um morango bem doce, olho para o espelho e sorrio. Meu sorriso é bonito e charmoso. Modéstia parte eu sou um pitel. Me sinto tão bem que sinto vontade de ser bonita assim todos os dias, até nos piores.

Das roupas, escolho aquelas com etiqueta. Tiro, assim com os dentes, a etiqueta do vestido amarelo de seda. Visto-o e vou novamente ao espelho. Esbelta, formosa.

Penso no salto e me pergunto se vale a pena passar o dia com ele. Decido que sim, porque hoje tudo vale à pena.

No cabelo faço tranças laterais de um lado só, meu melhor lado. Hoje sou a melhor de mim.

Meu príncipe encantado acorda e me pergunta aonde vou vestida assim. Digo-lhe que vou para casa dos meus pais, ele diz que eu não deveria sair na rua desse jeito, já que tenho homem em casa. Penso em discutir mas… Bem, ele tem razão, a quem quero enganar, não é mesmo?

Apago tudo. Sou apenas eu, fui boba de querer ser algo mais, sou eu, e mais nada. Ele me dá parabéns, sorrio porque ele se lembrou de mim, sem eu ter dito nada.

Sinto vontade de chorar, mas passa.

***

Meus pais moram longe, então saio cedo. Antes de ir pergunto a ele se quer ir comigo, mas ele diz que está cansado. No fundo fico feliz, mas sei que o que ele não quer é conversar com meus pais sobre o nosso futuro. Talvez eu também não queira.

Papai gosta tanto dele. É claro que gosta, é o primeiro Santista com quem namorei e o Santos é o time do coração da família. Além do quê ele é mesmo muito trabalhador e carinhoso; do jeito dele.

Certa vez briguei com ele, nos separamos e tudo. Mamãe infernizou todos os dias minha cabeça, dizendo que homem como ele não tem em lugar algum. Parecia até que era ela quem o namorava, tamanha a quantidade de elogios. Quando lhe disse o motivo para a briga ela me disse que com certeza ele havia se arrependido, que tinha sido coisa do momento. Quando ele apareceu na porta com o carro do som, confesso que fiquei constrangida, todos me olhavam, torcendo por ele, como eu poderia dizer não?

Mas ele é realmente muito bom comigo. De vez em quando até canta pra mim! De vez em quando me marca em coisas bem fofas e eu me sinto querida, lembrada. Se ele apenas me batesse e me enganasse, seria simples, mas por que ele tem que ser tão carinhoso? Por que eu me sinto culpada toda vez em que ele pede para voltar? No fundo, eu o amo. Só pode ser isso. É, é isso sim, eu o amo.

Verdade seja dita, não consigo me imaginar passando a vida inteira com ele. Meus pais já imaginaram até o vestido de noiva.

Chego lá, naquela algazarra que sempre me deixava tão contente quando menina. Papai me beija e abraça forte, me deseja toda a felicidade do mundo, diz que é muito feliz por eu ter nascido e então pergunta onde ele está.

Digo que ele não pode vir e encerramos o assunto. Papai diz que já que eu apareci e que é meu aniversario e tudo, deveríamos fazer um churrasco para comemorar. Como cheguei cedo faz sentido, dá tempo de comprar a carne e o carvão aqui nunca falta. Como eu amo esse povo festeiro!

Mamãe está lavando roupa, assim que me vê grita de felicidade e estende os braços ensaboados para me abraçar. É claro que ela toma cuidado para não me sujar com o sabão. Estou tão feliz, que saudades eu tinha de casa. Pergunto quando meu irmãozinho chega da escola e riem.

“Irmãozinho? Um homem feito, isso sim, já até faz a barba!”

Ouço a porta ranger e vejo um garoto de uniforme e mochila nas costas. Mais que um garoto, um adolescente.

“Adivinha quem apareceu!”

Um homão mesmo. É claro que ele fica contente em me ver, mas eu sei que ele nunca daria o braço a torcer como o papai, então ele se contém.

“Como tu cresceu, menino!”

“Conta pra ela Gustavo, que tu ta namorando e tudo!”.

“Eita, menino! Ela é bonita? Mais bonita que eu?”

O rosto dele ficou que nem um pimentão. Continuei cutucando o garoto, mas quanto mais eu cutucava mais ele se afastava, então mudei de assunto:

“Mas e então, quê que tu ta fazendo? Estudando muito?”

“Ih filha, esse moleque só quer saber de farra, não pega um livro pra estudar”

“Oh mãe!”

“Oxe! E não é verdade? Vai dizer que eu to mentindo!? Aluna boa era tua irmã, as nota tudo azulzinha, o boletim parecia até um céu! Mas então filha, mudando de assunto, como ta o serviço?”

“Ta bom, mãe”.

“Ah, que bom, agora, vê se traz aquele Josimar pra cá nem que seja arrastado pelos corno, ta bom? Onde já se viu um homem desse nem aparecer contigo no dia do teu aniversario, menina? Tem que segurar teu homem!”

“Ah, mãe, não deu pra ele vir, disse que tinha coisa urgente pra fazer”.

“E o quê que rodador de turno tem de urgente pra fazer, minha filha? Gente! Vai me dizer que ele ta cobrindo alguém lá? Eita, menino trabalhador!”

“Pois é, mãe”.

E a conversa seguiu por algum tempo, quando meu pai entrou na conversa foi pra dizer que o Gustavo nasceu pra ser médico, que tinha cara de médico e que a letra era um garrancho igual de médico. Eu me perguntei, assim pra mim:

“Eu nasci pra quê?”

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