O Pecado De Eva — Púrpura.

Jeff Venancius
CRÔNICAS
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3 min readJul 12, 2017
Foto: Olla Ky

O tempo não volta, mas a lembrança dos meus arrependimentos, sim.

Quando busco na memória, quando realmente busco, com toda força que tenho em mim, consigo enxergar um esboço de quando fui feliz. É só um esboço e, mesmo que eu me esforce muito, mesmo que eu escreva e diga e até mesmo grave; todas as memórias não passam disso. Estrelas mortas.

Sendo assim; que posso eu fazer, se não posso viver delas, se o futuro já está milimetricamente escrito desde quando nasci, ou até mesmo antes? Às vezes penso que, quando meus pais desejavam que eu fosse um menino, me desejavam bênçãos, e quando desejavam que eu fosse uma menina, me amaldiçoavam.

O porquê disso eu realmente não sei. Eu nasci para servir, para cuidar. Nunca para ser, nunca. Se brinquei de bonecas, era para preparar-me à futura maternidade. Se brinquei de casinha, era simplesmente um curso intensivo de Dona De Casa.

Se eu quisesse brincar com os garotos, eu poderia, é claro. Não seria muito direito, mas eu poderia. Os garotos nunca brincariam comigo de bonecas. Não que não quisessem, claro que queriam. Sei bem que, alguns garotos tiravam as roupas das minhas Barbies e ficavam vendo-as assim, nuas. O que pensavam? O que imaginavam?

Sempre odiei rosa. Para mim sempre foi uma cor nojenta, que não combina com nada, que não é nada. Uma cor forçada, imposta. O rosa é das meninas, todas as outras cores são dos meninos, menos rosa. Ou pelo menos assim era.

Púrpura. Um nome tão elegante; fazia meus lábios inclinarem como uma francesinha, até que me disseram que era quase um rosa. Então me decepcionei.

Mas eu gostava tanto do nome, que não consegui largá-lo. Tentei gostar do púrpura, tentei amá-lo inteiro, porque eu amava apenas uma coisa nele. Quanto mais me esforçava em amá-lo, mais descobria defeitos.

Púr-pu-ra. Púr-pura. Era fascinante me ver no espelho a dizer. Era sensual, até mesmo para uma criança como eu. Púrpura era atriz de novela, era a minha mãe quando se arrumava para ir a igreja, era o amanhecer inalcançável, pois todos me diziam que o Sol brilhava em púrpura, mas eu nunca poderia vê-lo, pois ele sempre aparecia tão cedo.

No dia que eu vi um vestido na vitrine e descobri que aquilo era púrpura, entendi que não era um rosa mais escuro. Era muito mais do que isso. Era admiração infantil e, essa, afinal, é a maior de todas as admirações. Há amor maior do que o amor inocente de uma criança? Eu amava aquela cor, aquela palavra, até mesmo aquela doença.

Sim, eu quis ter púrpura. Tal qual um garoto quer quebrar o braço para que o engessem, como um troféu. Eu quis ter aquele mal em mim, porque tudo relacionado aquela cor era motivo de juras de amor eternas.

E então me disseram que púrpura e roxo eram a mesma coisa. Isso foi decepcionante, é claro, mas saber disso me fez ter a idéia de que a dor era púrpura, porque a dor era roxa. Se a dor era púrpura, então eu poderia amar a dor, mesmo quando ela me fizesse sofrer tanto como toda a dor me faz.

Eis que um dia o púrpura se tornou amarelo. Não porque eu o via assim, mas porque me disseram que aquilo que me parecia não era aquilo que era. Eu, no entanto, passei a acreditar que aquilo que me parecia, bastava.

Era melhor ser enganada pelos meus olhos, do que enxergar a verdade cruel. Era melhor me convencer de que o amarelo não mais existia, e que tudo eram violetas; púrpuras.

Mas não era.

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