O rabisco e o verso

Adalberto Sampaio
CRÔNICAS
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2 min readJan 18, 2018

Dona Jana vendia um café amargo como seu coração arroxeado de tanto levar pancada. Numa banquinha de esquina, entre uma escola e uma avenida, ela coava o único preto que nunca tinha fugido ao seu abraço. Todo dia ela servia um menino, talvez rapaz, de nome desconhecido, que morava, quiçá estudava ou trabalhava, perto do seu ponto. Jana era faladeira, mas o menino-rapaz era calado igual uma porta de madeira e só abria a boca para soltar relutantes interjeições de dolorosa concordância. Ele só pedia um café, sentava lá, por meia hora ou mais, e rabiscava desenhos tortos em seu caderninho de 200 folhas, algumas ainda brancas.

No meio de uma quarta-feira e no primeiro quarto de uma xícara de café, o menino-rapaz se deparou com outro rapaz, talvez homem, sentado na mesinha do lado. Notou com atenção que o rapaz-homem segurava em uma mão metade de seus óculos e, na outra mão, um esparadrapo com a ponta pra fora. Com um movimento involuntário, a caneta do menino-rapaz começou a rabiscar, daquele jeito torto, um rapaz-homem de paletó e monóculo a caminho, quem sabe, da ópera. Não, a caminho do parque de diversões! Já que quando criança tinha se encantado pela roda-gigante e por esse seu particular movimento circular de uma hora estar no chão e noutra nas estrelas.

Enquanto ele rabiscava, nem sequer notava, que logo ao seu lado, o objeto de seu devaneio começara, por sua vez, a também observá-lo. O rapaz-homem, em sua cabeça, remexia os neurônios, como se fossem um dicionário, atrás de palavras para representar aquele menino, talvez rapaz, de olhar audaz que desenhava com fúria num caderninho envelhecido, a ponta da língua pra fora da boca. E com isso escreveu, sem mesmo anotar, que a ponta da língua era uma pena e a saliva tinta de tinteiro.

Os dois, sem saber, começaram a se retratar, cada um a sua maneira. Dona Jana, curiosa, observou o ritual. Suspirou, cansada com o problema da juventude: sonhar de olhos fechados e nunca ver o que se encontra logo ao seu lado.

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Adalberto Sampaio
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