O tradutor do silêncio

Ou: como é ser menino em um tempo-espaço de som e fúria

Dedo de prosa e poesia
CRÔNICAS
7 min readOct 4, 2017

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Depois do silêncio, o que mais se aproxima de expressar o inexprimível é a música.
Aldous Huxley

“Como traduzir o silêncio?”, um de meus alunos me perguntou. É pupilo de primeiro ano, mal sabe que a resposta não é rápida. Muito menos com palavras. Mas, enquanto olhava para seu rosto interrogativo, lembrei-me.

Lembrei-me bem da imagem dos olhos de minha mãe, observando-me, aguardando o que sairia dali, da criação quase que automática ou escapulida de seu ventre. Ela ao lado de tanta gente que meu parco conhecimento de menino muito pequeno não poderia contar. Todos me encararam durante anos, como se tivessem fome — ou como se realmente não tivessem fome, talvez — na espera de que eu lhes trouxesse o que lhes faltava.

Era um ano já avançado, coisa que você tem de fechar os olhos e imaginar. O mundo estava de ponta-cabeça, mas isso a gente já sabia e ninguém mais tinha vergonha. A criança já saía da mãe com o aviso: “você nasceu na hora errada, um dia esse já foi um mundo virado pro lado certo”. E, então, crescíamos como uma ponta de esperança, não de futuro, porque o futuro não existia mais, e sim de passado. Sim, sim. Nascíamos, e isso eu penso agora, como que para acionar o modo backward (não o forward), pois só nós, recém-chegados, poderíamos enxergar onde estaria escondida essa opção. Quem sabe? Era o que todos acreditavam.

Desse modo, a gente crescia com muitos olhos voltados para o palco de nossa existência nova e pura, com uma espécie de holofote que construíam sob nossas cabeças ainda nada programadas. E todos nos observavam frios, aos berros. Adultos, letreiros humanos, telas iluminadas e eficientemente indeléveis. Todos inexoravelmente futuro, maquinalmente insensibilizados. Menos nós, pequenos corpos purificados sem-mundo, tão sem memória. Nossas cabeças e corpos que, muito rapidamente, se tornavam rígidos. Porém havia esperança.

Você me entende?

Em um ano e um planeta já muito velho e esgotado, eu nasci. E lembro-me bem de como minha mãe me olhava, talvez com pena, talvez com fome, talvez como um pedido de socorro. Eu não podia escutá-la, todos falavam ao mesmo tempo, havia som e fúria no mundo — e quanto mais fúria, mais som; e quanto mais som, mais fúria; um puxando o outro e era assim, era assim. Uma surdez de tanto ouvir.

Assim como minha mãe e nossos vizinhos e todos aqueles que eu conhecia, em nosso microcosmo do bairro, dentro da megalópole em que vivíamos, enfim, todos nós (ou seja, quem eu conseguia alcançar como ‘nós’) éramos Catadores de Preciosidades. Exatamente assim que as pessoas de nosso conglomerado seco e cinzento eram chamadas. Uma profissão para muitos, “trabalho de formiguinha”, como os velhos chamavam e eu nem entendia as raízes da expressão. Tão sutis.

Basicamente, catávamos antiguidades e vendíamos para grandes empresários que, por sua vez, revendiam no mercado paralelo, geralmente para o Outro Lado do Mundo. O Outro Lado do Mundo, diziam, possuía lugares, grandes casarões onde guardavam as Preciosidades. Poucos podiam ver tudo isso em posição de encontro. Nós, os Catadores, apenas víamos as peças brutas, soltas em meio aos montes. Das pequenezas que encontrávamos, lá estavam materiais opacos e sem chip, pedaços de humanidade de carne e osso. Narrativas de um tempo que meus olhos tentavam ler.

Eu: um menino que ia atrás do passado. Ia atrás de minha mãe, que gritava alguns ensinamentos para mim, seu filho especial. Foi isso o que escutei de todos os Catadores amigos, e inclusive dela, mas não enquanto moviam línguas, lábios, glotes. Eu conseguia ouvir seus enormes olhos, seus corpos que se moviam de maneira arredondada, flexível e feminina para o meu lado — em vez da maneira rotineira com que agiam: frios, brutos, quadrados, como se fossem feitos de inox. Claro, alguns realmente eram fabricações de nosso tempo.

Nasci naquela época em que criadores e criaturas se misturavam, já eram simbiose inevitável. Da perfeição de homem e de máquina nasceu o que se tornara o caos de um mundo do avesso. E eu via tudo isso em silêncio.

É, eu não falava nada. E por isso todos criaram o hábito de me olhar com grandes olhos de espanto. E quanto mais me apontavam, mais eu desaparecia. Era mudez parida em um mundo que não sabia parar de gemer em megafones. Fui crescendo em meio às pilhas formadas por antigas promessas de futuro, de tudo o que fora criado para alcançarmos o avesso de tudo. Até que atingimos e, então, não sabíamos o caminho de volta.

Bilhões de homens e mulheres e máquinas e bilhões de telas e letras e brilho. Bilhões de armas e serras e sangue e graxa.

Lembro-me bem dos olhos de minha mãe, incansáveis, vividos em insônia que durava 40 anos, depois 50, 60, 70, 80, 90… E, então, paravam de contar. “Isso não termina nunca”, ela dizia quando o sol se despedia em um calor ardido do horizonte. Mas isso era coisa dela, coisa transmitida a mim como hábito, observar o sol que ainda existia. Porque os outros quase nem percebiam que, àquela hora, estavam banhando-se de outras luzes. “Ninguém mais liga se a Terra gira”, contava minha mãe.

E porque ninguém mais ligava, eu comecei a guardar, ser menino memória. Sabia, mais do que qualquer outra criança a minha volta (que já eram raras) e, inclusive, mais do que qualquer pessoa ali, eu sabia selecionar paisagens, passagens do tempo e do espaço, costurava narrativas com meus olhos e os guardava no meu cérebro programado para ser útil. Todos podíamos colecionar aquelas imagens da própria vida, aliás, éramos programados a isso. Mas a maioria utilizava a tecnologia da memória para ser mais um pedaço de ego vivo.

Contudo, eu: colecionador do tempo. Emudecido em meio ao som e à fúria.

Já não havia o que hoje sabemos ser sonho. O tempo em que alcançamos nos permitia breves lampejos de ser além do ter e fazer. Ninguém tentava se desprogramar, todos corriam e gritavam, voando de um lado a outro, buscando a sobrevivência. Muitos Catadores berravam sobre a possibilidade de ir para o Outro Lado do Mundo se achassem os artigos mais especiais da Terra, escondidos não sabiam onde. Mas encontrariam, encontrariam nem que fosse a última coisa que fariam na longa vida (que era realmente mais longa do que gostariam) que tinham.

Minha mãe não acreditava que conseguiria conhecer nada além daquilo, realidade na qual nasceu, cresceu e conheceu. Mas, seus olhos me diziam que ela queria acreditar que seu filho sim, seu filho iria encontrar o caminho para o passado. E eu ouvia isso e ia atrás de suas longas pernas.

“Professor, não entendo…”.

Porém, mesmo naquele tempo em que nasci, mesmo naquela terra metálica. Mesmo sendo um Catador, pelo que tudo indica, existia sorte, destino, milagre, coincidências. Cada um dá o nome que quer: mesmo em condições totalmente avessas, um menino mudou a direção da realidade. Eu tinha um dom que não estava mais programado nos genes humanos e, bem, eu ouvi.

Ouvi o silêncio.

Um dia, olhando minha mãe dormir os poucos minutos que descansava, eu consegui entender o silêncio, o travessão entrecortante no desespero do mundo que gemia, das pessoas que gritavam. Fechei meus olhos e entendi o que ele me dizia. E era lindo… Então, busquei a flauta (veja, ninguém mais sabia para quê aquilo servia) que catara no dia anterior, e ainda não havíamos conseguido vender no mercado paralelo, e com meus dedinhos magros traduzi o silêncio. Soprava e dedilhava o silêncio.

Minha mãe, então, me ouviu e despertou como se tivesse sido acordada. Acordada de verdade, de um sono que durara sua vida toda. De minha boca, até então emudecida, saía música. Toquei a flauta e era como se cantasse o silêncio, como se encantasse o tempo e conseguisse com que parasse. Minha mãe me observava maravilhada, foi a primeira vez que vi a cor de seus olhos.

Saímos os dois numa alegria que desconhecíamos. Saímos à rua, e magicamente todos começaram a fechar suas bocas. A parar seus corpos, a entender que algo ali estava acontecendo de precioso demais: e me seguiram em festa, sem fúria. Há quanto tempo a terra, as paredes, as máquinas, a pele das pessoas, seus pés, seus olhos e seus ouvidos não escutavam música? Ninguém sabia, nem nas histórias sobre Nós eram citadas as melodias.

De repente, o bairro todo, e toda a megalópole. Todos pararam. Conseguiram finalmente ouvir o silêncio. E quando eram banhados pela cantoria de minha flauta, lágrimas saíam de seus olhos secos como se estivessem limpando corpo e alma, alma! Ninguém nem mais usava essa palavra, somente velhos dicionários do Outro Lado do Mundo sabiam de sua existência. E de que ela existia em nossa invisível essência. Mesmo Nós, criadores e criaturas, simbiose de homem e máquina, nós tínhamos alma. Naquele tempo. No mundo do avesso.

E foi assim que tudo começou a se desfazer. E a se refazer. No avesso do avesso chegaríamos. Esperávamos tanto por grandes feitos e… Apenas precisávamos da arte para entender a vida. Da música. Do silêncio. Então, eu viajei terras distantes, sempre dedilhando a salvação, mostrando, enfim, o tão esperando caminho de volta.

Foi assim. Eu: menino tradutor de silêncios. Reflexo do inexprimível. Professor de música.

Você me escuta?

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Crônicas, contos, resenhas e rabiscos. Por Ana Lis Soares.