Os gemidos da vizinha

Leandro Marçal
CRÔNICAS
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3 min readJul 27, 2017
Chamou atenção um barulho inusitado na madrugada. Foto: Prefeitura de Aracruz.

A insônia sempre me visita nas madrugadas em que chego de um trabalho ou antecipo outro no notebook. Com ele aberto, tentava me concentrar no silêncio, até que ele foi cortado pelos gemidos da vizinha.

Moro em um sobrado que divide os muros com um corredor, no qual as seis casas que dividem a entrada podem ser vistas por mim da janela do meu quarto. Entre os barracos e os ensaios de uma banda em início de carreira que já ouvi nas tardes frias, também me acostumei aos sons de carros das duas avenidas que cercam minha morada.

Mas os barulhos de motores no sereno foram cortados lá pelas 2h de uma quarta-feira qualquer, quando os cachorros dos arredores dormiam e o restante do quarteirão atingia os mais profundos estágios de sono. Olhei para a janela fechada, parecia ouvir um grito.

Continuei escrevendo.

Outra vez a mesma voz feminina não se preocupava com quem pudesse ouvi-la. Se o sexo é um daqueles momentos que nos iguala sem distinção de classes, não havia o que temer.

Quando pensei que algum pudor impediria o som íntimo ser vazado outra vez, o gemido contínuo deu vez a um grito alto, de verdade. Parecia um daqueles momentos em que a criança se assusta por tomar um choque ao colocar o dedo na tomada, usando de audácia mesmo depois de ter sido avisada que não deveria enfiar nada ali.

Nesse caso, a tomada não devia ser personagem do grito.

Foi aí que desisti do trabalho em horário incomum, pensando na injustiça por não ter nada melhor a se fazer naquele momento. Invejei os vizinhos.

Lembrei a semana anterior, quando duas moradoras discutiram feio quando o filho de uma delas brincava no pequeno triciclo às vésperas da meia-noite.

- Tá achando ruim? Desce aqui e a gente resolve isso agora. Ele vai brincar até a hora que quiser! — dizia, enquanto o marido pedia calma e seu retorno ao cafofo do lar.

Seria ela? O estilo de falar da mãe surfista não tinha como ser denunciado no momento de prazer. A senhora incomodada com o veículo infantil não, aquela voz parecia mais jovem. Algum fã da banda que não sei o nome? Pensei em prestar bastante atenção numa alegria incomum da voz cantarolando Lulu Santos no dia seguinte. Nossas cordas vocais sempre denunciam o sexo da noite anterior.

O notebook já estava desligado, mas só poderia dormir depois que acabassem. Até torci para que o trabalho deles fosse bem feito, pela paz no mundo. Pois é sempre assim: uma banda tocando rock dos mais pesados pode ser ignorada, um único mosquito nos tira o sono.

Dormi sozinho, sem perceber quando. O sono vem e nos atinge na hora em que ele quer, não depende de nossa vontade. Como não dependeu da minha ouvir aquilo que não queria, mas ainda não inventaram um filtro auditivo. E não haveria vizinho com cara para pedir um “por favor, podem gemer mais baixo?”.

Não lembro o que sonhei naquela noite, mas por todo o dia seguinte havia um silêncio estranho no corredor.

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Leandro Marçal
CRÔNICAS

Um escritor careca e ansioso. Autor de “De Letra: o futebol é só um detalhe” e “No caminho do nada”. Cronista no Tirei da Gaveta (www.tireidagaveta.com.br).