Prolapso na sala de espera

Renan Castro
CRÔNICAS
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5 min readJul 2, 2018
I am a patient boy… I wait, I wait, I wait, I wait
My time is like water down a drain (Fugazi @ Waiting Room)

De repente resolvi sair de mim. Afastar-me para o nunca decorrido. Em qualquer espaço de tempo, qual será o caminho? Consegui e sobressaí. Continuava passando por todos aqueles olhos que nunca olhavam até mim, mas quando eu os fixava podia enxergar várias sensações. Com mais tempo enxergava até seus ânimos, desejos, seus receios, sonhos e feridas. Eram repostas concisas e certeiras. Dadas sem nenhuma percepção consistente, podia tê-las por um instante junto a mim. Podia tê-las comigo, conhecê-las de uma forma que nem mesmo o dono dos próprios olhos podiam. Era uma relação de conhecimento diferente. Podia ver do outro lado e distingui-la de sua essência. Em outras palavras, para se ter esta sensação, seria necessário que os olhos se voltassem para dentro. Que se fechassem e se revirassem pra trás, a fim de poderem enxergar o seu próprio eu. No interior de si mesmo, lá eu estava.

LAPSO 1: Lá estava tomado pela paciência

A sala possuía aquele ar de espera onde cada um olha para o outro e imagina quem será o próximo. Mas é claro que só eu tinha este pensamento perante aos outros, pois havia sido o último a chegar. Havia um homem, uma jovem e uma mulher com uma criança. Todos alternavam seus olhares entre si e o teto, pois o ventilador parecia deixar a sala cada vez mais abafada. Foi então que a porta se abriu. Todos miraram até a maçaneta e inclusive o homem que até se levantou. Saiu a moça de branco e mesmo sem olhar nos olhos, eu pude ouvi-la dizer “próximo?”. A mulher com a criança se inclinou e aproximou-se da moça, que possuía vestimenta extremamente limpa e com sapatos levemente encardidos. Os dois entraram. A mãe de maneira indiferente e o filho com o rosto pálido querendo engolir o medo à seco. A porta se fecha enquanto a moça fazia umas anotações em sua mesa de recepção. O homem deu um passo a frente, colocou suas mãos sobre os bolsos de trás, desfez o passo e voltou a sentar. Seu longo suspiro foi tão forte que alcançou o volume do giro do ventilador. De fato cortou o silêncio, mas não o sufoco naquele ambiente. Neste instante reparei a jovem sentada na poltrona individual, que cabisbaixa parecia secar as mãos em suas pernas, de forma que quanto mais o fazia, mais suada ficava — pois este movimento era cada vez mais contínuo.

LAPSO 2: Assim fiquei a observá-la

Assim fiquei a observá-la e neste meio tempo de algum ângulo eu pude entrar em seus olhos. Eram escuros, mas sua visão era clara. Estava a garota atenciosamente a contar os losangos do tapete. Realmente haviam várias formas deles, bordados, cores padrão e todos lado a lado sem se cruzarem. Parecia uma espécie de programa na TV onde assistimos sem piscar. Mas ai percebi que seus olhos apenas se concentravam naquele tapete, enquanto sua mente percorria por outras direções. Confirmei que de forma alguma pensava como o tapete fora produzido, se custou caro ou se no final o número de losangos seria par ou ímpar. Sua cabeça estava em outro lugar onde cabia qualquer sentimento, menos um tapete de centro de sala.

Suas mãos agora não transpiravam mais, porém suas pernas tremiam inquietas. Seu rosto levantou e eu fui pro fundo. Por trás do olho haviam lágrimas contidas. Mas já não se esperava que saíssem dali, pois elas já não ganhavam mais força.

Recentemente ela estava a mais de uma semana sem ir na escola, chorando todo dia, comendo pouco e um mês sem sangrar. Seria normal se ela estivesse mais de uma semana comendo bem, indo a escola todo dia, sangrando pouco e um mês sem chorar. Mas não havia essa opção. Estava tudo invertido, assim como seus pensamentos que não faziam mais nenhum sentido. Apenas permanecia desorganizado, enquanto eu me sentia extremamente ocupado e via que sua cabeça estava coberta de se’s quando eu na verdade já sabia que o um único “se” era certeza. Afinal seu fluxo menstrual nunca atrasava. Aquelas noites que ela passara ausente de si foram determinantes para condição atual. Conversar com seu parceiro pouco adiantava; era como contar para um cego que a luz está acesa — você não pode ver mas pode acreditar, pois sente. E este sentimento ela já tinha.

LAPSO 3: Não precisava de confirmações

Sua mente se encontrava em uma eterna luta consigo mesma numa guerra entre os “se” (novamente), o porquê e o que será. Não há retorno. O que resulta ainda mais em revolta. Dali em diante, sua vida seria tomada por consequências. Uma ela já bem imaginava, pois em seus últimos dias tudo que ela conseguia reparar era em carrinhos de bebê, crianças de colo e tapetes geométricos formado por losangos. Sua vida havia sido tomada. Não havia desejos, apenas vontade de sumir ou exterminar o tempo. Tudo isso para que nada existisse, nem mesmo ela que após nove meses poderia gerar uma nova vida, que inclusive dividiria a dela em amor e desespero, até que tudo passasse bem um dia. E isto realmente passa. Só depende dá atenção e valor que dedica-se ao presente. Pois já havia passado 35 minutos durante todo este tempo. Para a jovem menina naquela sala, apenas 3 minutos parecia se estender em 3 horas, dias e semanas, pois suas reflexões sempre se repetiam.

A sala de espera perdera o sentido. Pois com tantas preocupações o que seria uma consulta de dentista? Para ela não havia nexo nenhum. Era apenas uma forma de me enganar e continuar na difícil imagem que anda tudo normalmente.

A porta se abriu. Saiu a mulher com seu filho, que esbanjava um pirulito colorido balançando em sua mão. A moça da recepção então perguntou “quem é o próximo?”. O homem, que agora cochilava com uma revista na mão, acordou. Desta vez sem levantar, ele calmamente olhou para um lado e viu a mãe saindo com seu filho. Olhou para o outro e viu a jovem com olhar perdido, aguardando uma reação da mesma. A menina ergueu a cabeça, firmou os olhos e respondeu “Ele é o próximo.” O rapaz levantou ligeiramente sem entender, mas entrou na sala acompanhado pela moça recepcionista. A porta se fecha. O som do ventilador parecia mais calmo e o clima mais fresco. Ela olhou para baixo, fixou-se nos losangos do tapete e contou novamente: um, dois, três, quatro, cinco, seis…

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Renan Castro
CRÔNICAS

Escritor da NewOrder.in onde publica ensaios + textos sobre processo criativo, comportamento de consumo & comunicação. Estratégia & Insights na Mutato.