Quanto tempo se leva para colecionar o tempo

Ou: tique-taque, o passar da vida no rosto e no pulso

Dedo de prosa e poesia
CRÔNICAS
4 min readJul 12, 2017

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Era uma pessoa viciada em relógios. Tique-taque. Colecionava diversos tipos, tamanhos, cores, de parede, de pulso, despertador. Tique-taque. Na parede de sua cozinha, um dos antigos com o cuco, mas também tinha um moderninho com desenhos de legumes no lugar dos números. Andando um pouquinho, logo ali ao lado, do ladinho, a sala da casa reservava um dos grandes, seu predileto, herança da avó materna — a única que realmente entendera seu gosto pelo som do passar-do-tempo. Tique-taque.

Era uma apaixonada em relógios. Tique-taque. Em relógios e onomatopeias. Tique-taque, tic-tac, diversas onomatopeias. Colecionava-as. No seu quarto, um despertador branco, o celular digital, o reloginho de pulso dourado e pequeno. Se lembrava de quando comprara aquela delicadeza, andava pela rua — de maneira solitária, ela, não a rua, que fique claro — e encontrou o reloginho tão pequenininho na vitrine.

“Oh, que maneira bonitinha de guardar o tempo!”, pensou a moça.

Já tinha tido alguns namorados. Sabia que nenhum entendera seu fascínio, todos arregalavam os olhos quando entravam em sua casa. Não se demoravam muito em desaparecer. Era assim: toc-toc, então abria sua porta secreta, toda a vida vivida naqueles 86.400 segundos diários, vezes sete dias por semana, vezes quase trinta anos. Milhões de segundos na Terra. Eles, por pouco, por muito pouquinho se perdiam nela.

“Gosto de contar a vida, pra não desperdiçar”, explicava a eles. Tão apressados, sempre.

Passaram, passaram todos, assim como todos os centésimos de minutos que levaram consigo de sua juventude. Tique-taque. Tic-tac. Um deles, chegou a levá-la ao museu do relógio em São Paulo, no dia de seu aniversário. Ficara encantada com o gesto bonito. Permaneceu horas, segundo os ponteiros, observando como aquilo funcionava: o tempo registrado por máquinas — e ela ali, parada no espaço, ao lado de alguém que, logo logo, “puf”, sairia de cena, sumiria da frente de seus olhos. Viveria em paralelo.

Já um outro passageiro, certa vez, explicou como era o barulho do Big Ben, pois era muito viajado. “Ah! que maravilha seria ouvi-lo”, e ele afirmou que era um som alto, imperativo. Achou um charme aquilo de ter ouvido um relógio tão grande, tão antigo e tão bonito na beira de um rio triste.

“O rio passa, olha para cima e vê o relógio apontando que seu correr é desnecessário, mas inevitável”, concluiu a moça enquanto tomava um sorvete ao som do Big Ben ou da Big Boca do ex-namorado.

Passaram, passaram todos. Como já dizia o ditado decorado em sua cabeça: “tudo passa”. A tia lhe ensinara a frase em tom professoral quando ainda era uma pequena criança e… se lembra bem daquele dia: cataplam! Os pais morreram tragicamente. Ai, que dor. Pá-pá-pá. Morreram. Que dor.

Desde então, passaram-se mais de 315.360.000 de segundos. Contara para ver quanto aquilo duraria, queria garantir que, da próxima vez que, bang!, alguma coisa a atingisse tão em cheio pudesse se lembrar do passar do tempo. Ainda não sabia a resposta. Ai ai. Era permanência de dor.

Enfim, era apenas alguém que adorava relógios. Pelo seu bom gosto em colecionar o tempo, acabou tendo o barulho dos ponteiros como sua companhia de estimação. Chegava em casa do trabalho como bibliotecária na antiga biblioteca da prefeitura e, uff!, sentia-se o próprio coelho de Alice, entrando em sua toca, seu esconderijo particular. Ouvia todas as suas maquininhas funcionando, sentia-se satisfeita, fazia um chá (trimmmm, o timer a avisava que a água estava quente o suficiente) e glub-glub, bebia com gosto. Sentava-se no sofá com seu pijaminha de cetim e esperava. Aguardava por alguma coisa que ainda não adivinhara.

Era uma pessoa com amor pelos relógios, mas estava sempre atrasada. Riam dela, que coisa mais peculiar!, tantos ponteiros para apontar o seu próprio atraso. E ela continuava com suas pequenas pernas, correndo com pequenas pernas, tentando alcançar o mundo.

“Vocês não entendem, não entendem. O que eu gosto é de assistir ao tempo. Não brigo com ele, não tento conquistá-lo”, explicava-se. Enquanto, oh!, corria com pernas curtas e longas penas.

Tique-taque, tique-taque. A vida a passar por ponteiros, pelos relógios, por sua cozinha, sua sala, seu quarto, pela biblioteca, pela cidade, passava por seu rosto e seu pulso. O tempo a despedir-se sem nem ao menos ter chegado.

Ela ficava longas horas a refletir. Um dia, uma luz veio a sua cabeça e ela entendeu que, ah!, ele, no fim das contas, está em algum lugar que ainda não descobrira onde. Ele está, paralisia. Lugar. Palpitação, lembrança.

“Vocês conseguem perceber? O tempo apenas sussurra segredos ao vento — e só os ponteiros são capazes de ouvir. Sei eu, que não sou estúpida, que, ring!, no mesmo milésimo de segundo que conseguir pegar o tempo com as mãos, eu hei de encontrar meus pais”, concluiu um dia, enquanto conversava com os próprios relógios.

Tique-taque. O chá quente, o tempo líquido. A moça apaixonada por relógios e onomatopeias. Ai ai.

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Dedo de prosa e poesia
CRÔNICAS

Crônicas, contos, resenhas e rabiscos. Por Ana Lis Soares.