Roubaram minha moto

Leandro Marçal
CRÔNICAS
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3 min readMar 29, 2018
Minha moto não era igual à do Batman, mas eu gostava dela. Foto: Best Riders.

Daniel é meu vizinho e melhor amigo há uns vinte anos. Nossas casas dividem o mesmo muro, por onde combinamos rolês e fazemos provocações gratuitas em dias de clássicos. Torcemos por times rivais, ótimo começo para uma amizade melhor ainda.

Desde a infância, ele se mostrou mais malandro que eu. Não à toa, Daniel me apelidou incontáveis vezes com o nome de personagens certinhos. Me faltava jogo de cintura, dizia.

Quando começamos as trajetórias profissionais em carreiras distintas — ele, de Exatas; eu, de Humanas — nos ajudávamos e um sinal no muro era a senha para lhe avisar que seus pais chegaram. Assim, tinha tempo de se vestir e puxar um livro qualquer para dizer que estudava com uma das moças que entrava em seu quintal na ponta dos pés.

Para ir a mais festas de gente jovem e bonita, percebemos que comprar uma moto era bom negócio. Além da melhor mobilidade, perderíamos menos tempo indo de um lugar para o outro. Malandro, Daniel me explicou que um consórcio na empresa que um conhecido trabalhava sairia mais barato.

Juntei minhas economias e meses depois saíamos pela cidade, cada um em sua moto. Conversávamos no canto da pista, um ao lado do outro, com exceção dos dias em que a companhia da garupa era mais interessante. E foi num fim de noite sem caronas que um carro nos emparelhou e dois homens armados levaram as motos, enquanto baixava a cabeça com medo de tiros.

Desolados, voltamos a pé para a velha rua e de lá fui para a delegacia mais próxima registrar um boletim de ocorrência. Relutante, Daniel preferiu dormir, estava cansado. Bem que eu poderia tê-lo ouvido. É desgastante ficar três horas aguardando o procedimento burocrático de um domingo de manhã.

Daniel me chamou por cima do muro e ficou indignado. Não era necessário um B.O. Ele tinha uns bons contatos e já sabia onde estavam as motos. Um lugar escuro e estranho, em um bairro vizinho ao bairro vizinho do nosso bairro vizinho. Com a papelada oficial, ficaria mais difícil.

Certinho demais, eu não queria gastar um centavo para ladrões devolverem o que era meu por direito.

- Bobagem, cê nunca mais vai ver a moto.

Daniel passou a interromper mais os papos para falar ao celular. Um pouco isolado, não queria ninguém ouvindo. Pediu ajuda a um amigo mais forte e mal encarado e na quarta-feira apareceu com sua moto na porta da minha casa, em tom de provocação. Não é difícil um trabalhador com carteira assinada conseguir um empréstimo a perder de vista no banco e foi assim que pagou o resgate.

- Resgate?

- Resgate!

- Como assim?

-Da moto, sua anta!

- Com aqueles caras?

- É, com aqueles caras! Eu te avisei, senhor certinho…

No dia seguinte, fui à delegacia e não tinham notícias da minha moto. Tentei contar sobre o caso do Daniel, me perguntaram se eu queria ensiná-los a trabalhar e se era a favor de ilegalidades. Achei melhor ir embora.

Fiquei à vontade para beber na última festa. Daniel me levou e depois de uma conversa no canto do sofá da casa, foi embora em boa companhia. Precisei voltar de táxi e acordei com uma forte ressaca.

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Leandro Marçal
CRÔNICAS

Um escritor careca e ansioso. Autor de “De Letra: o futebol é só um detalhe” e “No caminho do nada”. Cronista no Tirei da Gaveta (www.tireidagaveta.com.br).