Ser, estar

Leandro Marçal
CRÔNICAS
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2 min readJun 14, 2018
Um verbo, dois sentimentos tão distantes… Foto: Ana Cuder.

Nas aulas de inglês, as perguntas do Carlos são as mais aguardadas pela sala. Embora mais velho que a turma, recusa prontamente que usem um “seu” antes do nome. Quer informalidade.

No começo do curso, ele penava. Dizia ser mais difícil aprender com o passar do tempo. Ficava com receio dos risos da molecada, se retraía. Agora, se sente à vontade com o restante do pessoal. Chegou a tomar uma cerveja numa véspera de feriado qualquer.

Foi lá que indagou a professora sobre o que mais lhe afligia: um único verbo, em inglês, usado para ser e estar.

— Veja só: estou velho, não sou velho. Sou corintiano, não estou corintiano. Tem coisa enraizada na gente, tem coisa temporária. Entende? Como pode esse idioma ser o mais influente no mundo, me diz? E tem mais: quem me garante que o “ser ou não ser: eis a questão” não era, na verdade, um “estar ou não estar: eis a questão”. Sou um velho contestador, não estou.

Eu estava — sim, estava — de canto, louco para ir embora, até a dissertação do Carlos prender a atenção da mesa. E fazia sentido, não? Passei a me perguntar, ali mesmo, sobre minhas condições. Sou escritor (acho), estou preocupado com o rumo das coisas. Aliás, não: sou um cara preocupado o tempo todo, sejamos sinceros.

Estou com frio, não sou friorento. Acho até que, pelo rumo das coisas, sou solteiro, não estou. Sou curioso, ansioso, pessimista, interessado em diversos assuntos. Estou trabalhando demais nos últimos tempos. É que me recuso a admitir ser um workaholic, fico me policiando.

Viajei sem sair do lugar e ainda assim o Carlos não parava de falar. Olhou para mim. Todos olharam para mim. Devem ter me chamado.

- Oi, diga. Tô aqui.

Ele voltou a teorizar.

- Claro, isso é óbvio. A única resposta possível sobre onde estamos é essa: estou aqui. Ninguém é capaz de dizer “estou lá”. É fisicamente impossível, rapaz.

Só quando as sobrancelhas das outras mesas se ergueram demais percebi que todos falávamos em inglês, um jeito de treinar melhor o aprendizado das últimas aulas. Nada mais inadequado que estudar em um boteco.

Vinha embora pensando no questionamento do velho Carlos. Ser humano ou estar humano? Sou maluco por gastar horas pensando em verbos ou estaria completamente doido por não refletir sobre nada? Ser raso deve ser mais tranquilo. Estar raso não sei se é possível.

Quem estou eu, onde sou?

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Leandro Marçal
CRÔNICAS

Um escritor careca e ansioso. Autor de “De Letra: o futebol é só um detalhe” e “No caminho do nada”. Cronista no Tirei da Gaveta (www.tireidagaveta.com.br).