Ser, veja: cerveja

Leandro Marçal
CRÔNICAS
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4 min readSep 7, 2017
Não existe saideira, sempre é a penúltima. Foto: Agavic.

Mais de dez horas após uma operação bem séria na coluna, um enfermeiro abriu as cortinas da UTI e me perguntou se eu gostava de cerveja, pois foi meu primeiro pedido ao sair do centro cirúrgico, ainda sob os efeitos da anestesia.

Pois é como um caso de amor dos mais antigos: eu e a cerveja, a cerveja e eu. Começou bem cedo, naquelas duas ou três vezes em que apanhei por roubar uma das latinhas do pai na geladeira, enquanto ele se distraía.

Mais perto dos 30 do que nunca antes na história deste careca, são pouquíssimas as coisas que não trocaria por uma latinha gelada ao fim do dia. Depois que inventaram esses aplicativos de transporte individual, melhor ainda, não corro maiores riscos ao voltar para casa.

Minha transformação em um bicho de bar foi semelhante à evolução dos Pokémons. Nada de baladas: basta um lugar para ficar sentado com a galera, um garçom camarada e pronto, me sinto em casa.

Já faz uns bons meses que cortei o refrigerante de forma radical — não no sentido esportivo. Em casa nunca frequentamos algum fã-clube dedicado à bebida estranha de sabor artificial, mas resolvi acabar de vez com o excesso de açúcar no meu sangue.

A cerveja não. Encontro jurisprudências e desculpas para rebater quem tiver a audácia de falar mal dela na minha frente.

No universo paralelo criado pela minha mente em modo aleatório, um dos primeiros requisitos a ser preenchidos nas fichas distribuídas por São Pedro na entrada do Céu é quanto ao gosto pela maior das bebidas alcoólicas. Os que não louvassem o líquido sagrado passariam a eternidade nadando nos lagos do tinhoso por um pecado tão venal: negar mais de três vezes o colarinho branco escorrendo do lado de fora dos copos.

Parei de comprar uns engradados de estoque para a geladeira porque comecei bebendo uma lata para finalizar o dia estressante, outra para assistir ao jogo, uma antes do filme, aquela para acompanhar a pizza, até perceber que tomava uma cerveja até para tomar uma cerveja. Em casa. Sozinho.

Já ouvi uns malucos falando das saudades pelos tempos em que a viam como uma bebida de gosto amargo. A mim, é impossível nutrir essa estranha nostalgia, pois meu caso é de amor ao primeiro gole.

Há uma divisão mental básica sobre as pessoas que conheço, quase uma definição de caráter: as que bebem e as que não bebem cerveja (e não sabem o que estão perdendo ou são loucas e deveriam procurar um especialista o quanto antes, deve ser algum problema mental sério, Deus me livre).

Segundo uma teoria não comprovada, criada pelo mesmo estudioso que escreveu essas linhas, os amantes de cerveja tendem a ser menos viciados em doces, o que ajuda a evitar diabetes, por exemplo. Além do mais, conhecemos gente muito mais interessante com um copo na mão do que segurando os chatíssimos halteres. E não estou nem aí para o crescimento involuntário da barriga, causado pela maior bebida de todos os tempos. Todo outro motivo para frequentar academia que não seja conseguir um saldo maior de saúde para compensar abrindo latinhas e entornando a loira gelada é uma desculpa esfarrapada.

Quando alguém comenta de um novo namoro para este eterno solteiro, reclamando que a outra parte é chegada em beber “uma cervejinha”, meus neurônios entram em curto-circuito, pois não sei qual o defeito em ser normal. E essas maravilhosas pesquisas falando de seus benefícios já salvei nos favoritos de todos os navegadores possíveis, para relembrar nos dias de consciência pesada.

Claro que o alcoolismo bate à porta de nós, os adolescentões à espera de sexta-feira. Mas a cervejinha pode ser uma fiel amiga quando não nos escraviza. Os que sempre preferem uma gelada aos destilados de gosto duvidoso, mas mais aceitos pelos grupos, têm meu respeito.

Não é possível não gostar de uma cervejinha, breja, cerva, cervejoca. Mesmo que haja milho na composição, surja uma dor de cabeça no dia seguinte ou seja obrigado a repetir incontáveis idas ao banheiro depois da primeira mijada. Que bom que seus comerciais estão mais democráticos e agora homens e mulheres se renderam a uma das grandes verdades da humanidade: cerveja é cerveja, e vice-versa, num looping infinito e indefinível.

Por mim, abasteceria o carro com latinhas ou long necks, tomaria banho com barris, lavaria o quintal com o famigerado litrão, hidrataria os cachorros de forma a que eles finalizassem as lambidas rápidas em seus potes com um “ahhhhhhh” característico.

Muito melhor que achocolatado, iogurte, suco de limão sem açúcar e caldo de cana — todos ótimos. Seu primo, o chopp, até rivaliza um pouco, mas não é com ele que sonho quando anestesias me entorpecem. Desconfio de quem não bebe cerveja.

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Leandro Marçal
CRÔNICAS

Um escritor careca e ansioso. Autor de “De Letra: o futebol é só um detalhe” e “No caminho do nada”. Cronista no Tirei da Gaveta (www.tireidagaveta.com.br).