Sinal de Fumaça

Anderson Carvalho
CRÔNICAS
Published in
3 min readJul 17, 2017

Esse texto é sobre Michael.

Fomos amigos no ensino médio, depois ele desapareceu em uma esquina enquanto eu batia as mãos nos bolsos vazios em busca do isqueiro. Nunca mais nos vimos, nunca mais nos falamos.

Nessas horas duvido que Porto Alegre seja um ovo, nesse milhão e pouco de pessoas se perde uma com extrema facilidade.

Como em todas as minhas lembranças era um dia de sol. A sala de aula lotada com adolescentes vindos de todas as partes da cidade, ninguém se conhece, ninguém para conversar. Não existiam smartphones para fugirmos do contato com os outros. Interagir era necessário. Acontece que no ensino médio ninguém fala nada com nada, essa é a verdade. Futebol, meninas e eventuais brigas eram o centro de todos os acontecimentos do colégio.

Michael gostava de cinema, literatura e queria ser psicólogo. Eu tinha um violão, uma falta de vontade de voltar para casa e um tédio que sempre me acompanhou. Ele tinha o que dizer, eu queria ouvir alguma coisa, qualquer coisa.

Ele não era muito extrovertido e se incomodava mais do que o razoável com as espinhas que lhe cobriam o rosto. Nunca sofri com as espinhas, por isso não entendia o seu desconforto. Pelas espinhas Michael se reconheceu em Henry Chinaski e me apresentou Bukowski. Nunca soube como agradecer por isso, ler o velho Buk tão cedo na vida apertou alguns botões importantes.

Mas Michael tinha outra carta na manga, um dia me trouxe um CD que gravou um álbum que eu “precisava escutar”: Radiohead, Ok! Computer. Com Radiohead comecei a me esforçar para aprender inglês. Michael comentava sobre as letras, eu não entendia nada, mas gostava do som.

No ensino médio Blink 182 e Millencolin diziam tudo que eu conseguia entender sobre a vida. Fora toda a emoção ensaiada e exagerada de The Used e Dance of Days que eu gostava de imitar.

Hoje por qualquer motivo nostálgico me peguei ouvindo Ok! Computer depois de muitos anos. Uma década depois sou capaz de perceber todas as nuâncias, todos os temas que estão ali. O que está dito e o que está implícito.

Outra vez Michael apareceu no colégio com um livro que ele tinha comprado em um sebo. Um diário ou uma coletânea de correspondências do Kafka, em espanhol. Apresentou para nosso grupo a frase que mais lhe chamou a atenção: “Dormir, acordar, dormir, acordar…” Nós rimos, Michael guardou o livro.

O ensino médio passou e vez que outra encontro lembranças daqueles dias em filmes, canções etc. Os dias seguiram se transcorrendo, meu rosto se encheu com uma barba que nunca imaginei e passei a viver com uma intensidade que me encheram de assuntos para ter com Michael.

Sem perceber Michael foi um dos colegas-professores que tive durante o ensino médio. Nos professores de fato eu não prestava atenção, sempre tive essa coisa rebelde se mexendo aqui dentro.

Esse era o negócio com o Michael, ele entendia, sentia todas essas músicas e livros que para mim eram entretenimento. Hoje que entendo do que ele falava não temos mais contato.

Afinal de contas Michael, por onde você anda?

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