Só consigo pensar no almoço

Leandro Marçal
CRÔNICAS
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2 min readApr 26, 2018
Pratos cheios monopolizam meus pensamentos pela manhã. Foto: Portal 6.

Meu trabalho serve apenas para pagar boletos. Percebi isso quando o almoço passou a dominar minha mente todas as manhãs. Às segundas (às vezes, também às terças) trago aquele restinho da macarronada ou churrasco de domingo e abro exceção para as marmitas. Às quartas, a feijoada no restaurante do Tom me deixa sonolento e atraso os relatórios da tarde.

Às sextas, gasto um pouco mais do vale-refeição. Como no lugar mais caro e ainda tomo uma cerveja, seguida da bala de menta e uma escovação de dentes mais rápida que o normal para ninguém perceber na sala de reuniões um leve hálito alcoólico para suportar a espera do sábado.

Diariamente, conto os minutos para passar o cartão e partir para a hora mais feliz do expediente. Vinte minutos antes de descer as escadas, já combinamos o lugar para pesar os pratos. Gosto de ir ao self service. Lá, realizo o sonho de colocar duas misturas no mesmo prato. Em casa, me acostumei a dias só de carne, apenas de frango, exclusivos de peixe.

Esses cartões dão a ilusão de que é possível comer coisas diferentes todos os dias, sem o resto de ontem, e me fazem não tomar coragem de pedir as contas e ir embora do lugar que paga as contas que não pedi. Ainda assim, economizo para evitar almoçar as esfihas da dona Cleide, ali da esquina, quando o vale não vale mais nada.

Na metade da metade do expediente, já começo a imaginar a fartura de escolha à minha frente, o arroz anabolizado com legumes do dia anterior, um feijão cheiroso e o pouco tempero na salada para o prato não pesar muito no bolso. Essa masturbação alimentar me impede de render mais entre planilhas, cálculos, apresentações para a reunião da tarde e comentários reacionários de um colega mais velho que finjo respeitar. Dou uma desculpa para não almoçar com ele e ouvir suas enfadonhas histórias de orgulho da filha recém-formada.

Quero me encontrar com a bisteca suculenta e sentir prazer quando ela deitar no estômago. Sem muito papo furado para atrapalhar a visão do recibo da maquininha vindo à mão, com o saldo ao final para manter o controle sem comprometer o orçamento. Esse cartãozinho bem que parece, mas não é mágico.

- Vai imprimir mais ou é só isso?

Esqueci a fila atrás de mim na sala da impressora, peguei minha folha e voltei para a mesa, não sem antes entregar o relatório — antes do prazo — para quem me cobra diariamente. Encarei o relógio: mais dez minutos e mataria minha fome.

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Leandro Marçal
CRÔNICAS

Um escritor careca e ansioso. Autor de “De Letra: o futebol é só um detalhe” e “No caminho do nada”. Cronista no Tirei da Gaveta (www.tireidagaveta.com.br).