Três Garotas 03

Capítulo 03

Rodrigo Goldacker
CRÔNICAS
8 min readMay 22, 2018

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Arte de Arthur Rakham retirada do Pinterest, disponível aqui.

Capítulo anterior aqui.

P-03.

A ruiva esperava olhando para a rua.

Mordia os lábios de tempos em tempos e o barulho constante de seus saltos batendo ansiosos no chão parecia preencher de alguma forma os pensamentos dele.

Não poderiam seguir com aquilo desta forma: logo ele seria “apresentado” para vários estranhos e iria com ela para um lugar absolutamente desconhecido, mas até então nada sabia de fato sobre sua companheira. Gostaria de poder conversar com ela, descobrir mais a respeito dela e do lugar para onde iam. Tentando fingir um descompromisso na voz, mas se traindo por gaguejar ligeiramente, ele perguntou:

— Então… Como é essa festa para onde vamos? Quem são essas suas “amigas”?

Pam piscou os olhos, focando novamente seu companheiro. Pareceu surpresa por um pequeno momento de que ele estivesse de fato ali, como se sua distração e nervosismo tornassem-no, de algum jeito quase literal, invisível. Parou de bater os pés, se curvou na direção dele e respondeu, ainda com palavras rápidas, mas falando mais baixo do que antes.

— É uma festa, oras. Cheia de gente, pouca luz, dança, bebida. Sabe?

Ele engoliu em seco. De fato, não sabia. Não era frequentador deste tipo de ambiente. Mas se manteve em silêncio e ela, talvez notando seu desconforto, prosseguiu.

— E são várias amigas. Algumas da escola, algumas não… Pessoas, só pessoas. Eu ando com elas, mas na verdade é só pela companhia mesmo. Não é como se tivesse grandes amizades nem nada assim.

As respostas dela eram evasivas e inseguras. Incrivelmente, isso parecia contrariar bastante toda a sua atitude confiante. Ela não parecia gostar muito de dar aquele tipo de detalhes e também não parecia gostar do rumo que o assunto tomava. Ele, com certo desespero por notar o desagrado de Pam, tentou desvirtuar a conversa para outra coisa qualquer:

— Então… Você estuda, certo?

Ela soltou uma risada sarcástica para a pergunta estúpida e desconexa. Deu de ombros e respondeu mesmo assim, com a voz distante:

— Sim, eu estou no último ano. Repeti uma vez. Aliás, acho que esse é um dos motivos de eu não conseguir me dar muito bem com os outros. Todo mundo parece me julgar o tempo todo…

Ele sorriu de volta, simpático à situação dela. Estava acostumado com coisas parecidas. Sua vida toda parecia estar cheia de pessoas que o pressionavam.

— Não é culpa sua. Gostam de exigir de você porque você parece mais forte do que eles, talvez. Fazem isso porque acham que você é forte o suficiente pra aguentar.

Ela arqueou as sobrancelhas, surpresa e sem palavras diante do que ele dissera. O ônibus chegou. Pam deu sinal e entraram juntos. Ao sentar do seu lado, ela sorriu e então a conversa continuou. Estava menos agitada agora e finalmente parecia prestar atenção nele de verdade. Falaram sobre assuntos de escola e ele contou um pouco sobre seus próprios estudos. Ela ria de suas histórias e se identificava certas vezes. Ele sabia que talvez existisse algum exagero em cada reação dela, mas começava a gostar daquilo. A forma como ela maximizava tudo facilitava seu entendimento do que acontecia.

Desceram aproximadamente vinte minutos depois. Passaram por um pequeno bairro residencial, andando um bocado mais devagar do que antes. Diante de uma casa, jogado na calçada, Pam encontrou um livro roxo e antigo. Pegou-o e folheou algumas páginas. Depois, jogou no chão com desinteresse e o chutou para longe. A pequena ação gerou um momento de estranha e curiosa raiva silenciosa nele, mas nada disse. Não tinha razão para implicar com um livro qualquer.

Passaram em frente de uma praça. Ela o encarou ligeiramente indecisa, mas disse:

— Ainda é muito cedo, eu estava ansiosa por idiotice… Temos uns vinte minutos, acho. Podemos esperar aqui ou ir direto, o que você prefere?

Ele se surpreendeu ao ter sua opinião requisitada. Se fossem direto, provavelmente teriam menos tempo sozinhos, mas ele finalmente descobriria para que tipo de lugar estava sendo levado, já que ela relutava em dar detalhes sobre o assunto. Se ficassem, teriam mais tempo para conversar, mas de fato tinham muito mais o que conversar? Ele tinha medo de entediá-la. Talvez pudesse sugerir que esquecessem um pouco da festa… Quem sabe sugerir que fossem para outro lugar?

Ir diretamente para a festa, permanecer na praça mais um pouco ou tentar dar outros rumos para a noite?

D-03.

O caminho ia cada vez mais distante do ponto de ônibus e do supermercado, mas ele continuou a segui-la sem questionar.

Quanto mais andavam, mais confiante a morena parecia ficar. Conversava agora abertamente, contando banalidades em uma voz serena e regular. Existia algo de misterioso em seus trejeitos e em seu aspecto, mas ele não era capaz de questioná-la sobre nada.

Fingindo não perceber o que acontecia, apenas seguiu andando com ela e a escutando falar. Agora era ele que dava respostas curtas e sempre olhava ansioso para onde estavam.

Quarenta minutos se passaram com eles indo pela cidade. O céu já começava a escurecer e uma brisa fria sussurrava pelas ruas. Volta e meia Diana anunciava, com uma risada sutil logo após, que não demorariam muito mais. Em dado momento ela disse que precisava “buscar algo” e que a companhia dele tinha sido muito bem-vinda.

Eram cinco e meia quando finalmente pararam. Estavam em uma pequena rua de paralelepípedos sem saída, absolutamente vazia de pessoas. Entre as casas modestas da rua, o casarão antigo e malcuidado para qual foram se destacava pela feiura. O portão estava torto e sem tranca, permitindo a fácil entrada de quem quisesse. Diana foi animada até a porta, chamando para que ele a acompanhasse. Nervoso pela aparência do lugar, ele sugeriu esperar do lado de fora. Ela, ligeiramente desapontada, permitiu que ele assim o fizesse, tocou a campainha e foi atendida pouco depois.

Ele não conseguiu ver direito o homem que abrira a porta, encolhido entre as sombras do hall de entrada escurecido do casarão, mas sua silhueta era grande e gorda. Pelo que ouviu do murmurar distante de sua voz rouca, era provável também que o estranho se tratasse de um homem velho. Diana entrou e abraçou o homem. O idoso não percebeu a presença dele esperando e observando da rua, encostado em uma árvore seca de raízes expostas que destruía lentamente o concreto da calçada. Após o estrondo do baque da porta batendo com violência contra o batente, tudo ficou silencioso e ele ficou sozinho na rua, variando entre olhar para o céu, para o casarão, para a calçada degradada e para os próprios pés.

Vinte minutos se passaram lenta e calmamente enquanto ele aguardava do lado de fora, mas a tranquilidade suburbana foi interrompida por barulhos estranhos que vinham do casarão. Ele escutou um grito surdo e abafado de algum lugar dentro da residência, seguido logo depois por um baque surdo.

Foi até a entrada com os passos oscilando. Nervoso, apertou a campainha. Não obteve resposta. Colocou a mão na maçaneta e descobriu que a porta estava só encostada.

Ao entrar no cômodo, ele se preocupou ainda mais. A sala não tinha qualquer tipo de mobília. Havia ali apenas uma gigantesca pilha de caixas lacradas de papelão que estavam apoiadas na parede. Uma segunda porta estava entreaberta para o que deveria ser a cozinha (estava muito escuro para ter certeza).

Ele escutou outro baque vindo do andar superior.

Ele sobe as escadas, permanece esperando na sala ou vai embora?

M-03.

Os dois permaneceram sentados por mais alguns instantes sem que qualquer coisa acontecesse.

A loira continuava em silêncio, encarando a capa desbotada do seu livro. O eco dos versos que ela lera permanecia na cabeça dele. Aquelas palavras pareciam conter algum significado curioso, uma mensagem estranhamente antiga e bonita. Megan lera aquilo sem qualquer razão aparente. Ele não poderia apenas ignorar o que aquilo queria dizer, estava interessado demais naquele texto.

— Você poderia traduzir? — Foi o que disse, sem se preocupar muito se seria vergonhoso pedir aquilo. Estava realmente curioso sobre o que aquelas palavras significavam.

Ela suspirou com a pergunta, como se estivesse com preguiça de explicar. Respondeu com a voz distante, sem deixar de encarar a capa do livro:

— A melodia das palavras vai se perder na tradução. Acho que seria melhor se eu apenas tentasse resumir, tudo bem?

Ele concordou com um aceno de cabeça e permaneceu em silêncio, esperando. Ela abriu o livro de novo, deu uma pequena folheada pelas páginas amareladas e, com o dedo indicador acompanhando sua leitura, começou seu resumo com uma voz baixa e controlada. Megan parecia ter ligeira vergonha e incômodo, como se aquela história fosse dela e pessoal demais para ser contada para qualquer um.

— A história começa com um homem perdido em um gigantesco campo de grama vermelha. O céu está escuro e sem estrelas e o horizonte, para todos os lados, só tem mais da mesma grama avermelhada. Essa tal grama tem um brilho pálido e triste e ele está completamente sozinho. Ele não sabe como chegou ali, não se lembra do seu passado e não sabe o que tem que fazer. Certo?

Ele acenou com a cabeça, interessado. Não queria interromper a narrativa. Ela, com outro suspiro de desânimo, continuou:

— Ele não envelhece, não tem fome e nem sede. Os únicos males que o afetam são o tédio e a solidão. Ele passa anos, centenas deles, andando por aquele campo, sem nunca encontrar o fim e nem nada de diferente. A paisagem nunca muda. Aliás, nada nunca muda. Ele não sabe que direção tomar, ele não sabe se existe algum caminho para tomar. É isso.

Ele ficou ligeiramente incomodado. Megan fechou o livro em um ato ligeiramente teatral e voltou a encará-lo. Ele questionou, nervoso com a história:

— E o que acontece depois com o homem? Como ele saiu dali?

Ela deu uma pequena risada, levantou e começou a andar. Virou para trás em dado instante esperando para que ele a acompanhasse. Quando já de volta em seu caminho, ela respondeu:

— Não acontece nada. Ele nunca saiu de lá.

A resposta não parecia satisfatória. Ele encarou a grossura do livro que aparentava ter no mínimo umas setecentas páginas. Porém, com um riso de entendimento e um interesse crescente por aquela extravagância, continuou a acompanhá-la.

Chegaram até seu destino, uma pequena casa de apenas um andar em um bairro residencial. As paredes eram de um amarelo agradável e havia um pequeno quintal às vistas com algumas plantas e bancos. Apertaram a campainha, mas ninguém respondeu. Megan, ligeiramente impaciente, tirou uma chave do bolso.

— Eu tenho a chave. Podemos esperar lá dentro, se você quiser, parece que minha amiga não está em casa.

Existia uma pequena praça ali perto. Ele poderia sugerir que fossem até lá, se quisesse. Não sabia quanto tempo a tal “amiga” de Megan demoraria e andar um pouco poderia ser uma chance para que talvez conversassem mais. Mesmo que a casa parecesse ser bastante agradável, sentia que talvez fosse ser ligeiramente incômodo e tedioso se ficassem lá sozinhos. Ele também pensou em sugerir que se encontrassem outro dia, talvez marcando algo melhor planejado.

Andar até a praça, entrar na casa ou tentar decidir outro dia para se encontrarem?

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