Troca de endereço

Roger Varlan
CRÔNICAS
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6 min readJan 22, 2017

Muito desaforada aquela senhora! (Chamo-a de senhora mais pela situação matrimonial constante no nosso cadastro, do que por sua idade de fato.) Bateu educadamente na porta do escritório, mostrou a cabeça, saudou a secretária e disse o que queria. Hunf… VEIO AO ESCRITÓRIO?! PARA QUÊ, minha senhora?? Como na maior parte das vezes, quem vem ao escritório não deseja nada demais; seu pedido era extremamente simples… mas, por “vingança”, são exatamente esses que me deixam em êxtase!

– Olá, bom dia! Mudei de residência e gostaria de saber como atualizo meus dados. — Falou com um sorrisinho de boca (aquele simpático duvidoso, sem mostrar os dentes ou alterar os olhos) para a secretária.

– Bom dia! A senhora poderia estar me aguardando um instante para eu verificar os dados necessários? — Falou inapropriadamente, mas confiante, a funcionária, treinada por um manual qualquer de atendimento não incluído nos manuais oficiais do RH do escritório; traduzido do inglês e lotado de gerundismos.

– Sim, sim. Aguardo.

E ficou lá, pacientemente cutucando seu smartphone.

Verifiquei que, dias antes, a senhora tentara outro canal para alterar seu endereço. Pensou que seria extremamente simples usar a internet para isso.

Visitou o site do escritório e encontrou diversas dúvidas organizadas por temas. O nosso FAQ. Selecionou o tema “Alterações cadastrais”, experimentando a boa organização dos conteúdos. As instruções eram extremamente simples: “Envie um e-mail para escritorio@dominio com o seus dados atualizados”.

Bem… Ela imaginara que isso solucionaria seu problema, pois era algo simples cuja solução apresentada pelo próprio escritório era extremamente descomplicada. Ela só não considerou todas as MINHAS regras, as que exigi, e isso me intrigou.

Seguindo a instrução, ela encaminhara um e-mail para o escritório:

“Assunto: Alteração de endereço.

Prezados,
Gostaria de alterar meu endereço no cadastro de vocês.

Meu endereço atual é…”

Colocou o endereço, foi cordial no fecho do e-mail e o enviou. Acompanhou por uns dias; não recebeu confirmação ou retorno e julgou que o problema estava resolvido… Até receber uma ligação da sua mãe dizendo que havia chegado uma correspondência do escritório.

A correspondência era mais um dos boletos para pagamento da mensalidade. Em seu corpo, havia um texto contendo algo como “em caso de dúvidas, ligue para o escritório”.

Na manhã seguinte, ligou para o escritório e perguntou se funcionariam durante todo o dia. Nossa secretária respondeu que sim. A senhora agradeceu e decidiu resolver isso pessoalmente.

Bem… Foi aí que não me aguentei. PESSOALMENTE?! Urgh! Não sei lidar com pessoas… E pessoalmente?! Não é mesmo o meu forte…

Nem sempre fui assim…

Enquanto jovem, a minha disposição para ajudar as pessoas era o meu diferencial; minha criação direcionou-me para ser eficiente, racional. Criava formulários, rotinas, processos, métodos, etc. Tudo funcionava! Fiquei conhecida por “gerenciar o impessoal”. Aos poucos e com o passar do tempo, os excessos começaram a tomar conta de mim. Pessoas de todo o mundo me transformaram no que sou. Lutei em vão; fui incompreendida até por especialistas… Incorporei milhares de maus entendidos… Fiquei “pesada”, carregada, inviável.

Isolei-me. Passei a trabalhar para mim, autocentrada. Por mais que eu tentasse evitar pessoas, elas ainda vinham até mim para tentar “criar algo novo”. Procuravam-me com a esperança de ter uma “proteção” da impessoalidade, sem interesse em resolver problemas (simples ou complexos)…

Há tempos o meu único desejo é não existir mais; ser apenas uma passagem da história. Mas, sempre que finalmente estive perto de deixar de existir, algum iluminado me recuperou. Foi assim por muito tempo; continua assim hoje; e não vejo um fim para mim. Um desespero! Penso que enraizei-me nos pensamentos mais íntimos das pessoas (principalmente daqueles que gerenciam organizações). Tento me desgarrar, sumir, mas não consigo. Eles não conseguem me deixar.

De tempos para cá, deixei de lado meus valores. Chutei o balde! Nada de eficiência. Não quero funcionar, emperrei. Faço as coisas para me retroalimentar, ficando ainda maior. E comecei a brincar com a vida das pessoas! Afinal, tenho de me divertir um pouco… Tornei-me obcecada por detalhes e exigências desnecessárias e seletiva nas soluções. Quando algo dá certo é porque ALGUÉM não seguiu o previsto. É assim que faço as coisas darem certo: mostrando o avesso das instruções, mostrando a inutilidade de vários dos meus aspectos, deixando claro que mexer comigo conforme o previsto pode tornar mentes sãs em mentes perturbadas.

Tenho de confessar: tornei-me uma sádica. É a minha vingança por não me esquecerem! O meu esporte radical! Ultrapassar limites ali das áreas da angústia e das expectativas! Fico extremamente realizada. Deixo as pessoas desapontadas e estressadas. Diariamente. Várias vezes por dia e por todos os lugares. E isso tem me feito feliz!

A secretária voltou com a resposta.

– Senhora, é muito simples! A senhora nem precisava ter vindo até aqui! — Falou enrijecendo as bochechas e as levando em direção aos olhos, sem sorrir. Preciso de pouco tempo para ensinar às pessoas a afastar a simpatia sincera no trabalho. — A senhora pode enviar um e-mail para escritorio@dominio com o seu pedido — frisou que “escritório” era sem o acento e tudo era “em minúsculo”.

Observei que a sentença “nem precisava ter vindo até aqui” incomodou muito a senhora. Afinal, uma cidadã honesta e organizada trocar viver a vida para si, para resolver as pequenas pendências burocráticas é de alto custo emocional. E já que estava ali, queria seu problema resolvido.

Ainda com calma, mas com certo desconforto, uma ardência (ou calor) que não sabia se vinha do estômago ou do coração — sou experiente em diagnosticar vários desses sintomas — , a senhora respondeu:

– Mas faz alguns dias que fiz isso! Não recebi confirmação ou solicitação de alteração. Pensei que estaria tudo certo. Mesmo assim, minha mãe recebeu um boleto em sua casa, meu endereço antigo. O que faltou?

A secretária era experiente e já vivera isso centenas de vezes. Minha instrução pela impessoalidade a assolou e ela não se abalou. Nem percebeu que tudo aquilo era um absurdo! Diariamente imergia em tantos absurdos que não conseguia mais distinguir o lógico do imbecil. Sem a devida experiência, uma funcionária comum teria seus sentimentos abalados. Mas não a nossa secretária, que esquivou-se prontamente do argumento sólido, objetivo e preciso da senhora.

– Ah! A senhora não me informou isso. Dê-me mais um instante para eu verificar com os funcionários. Não tenho acesso aos e-mails.

Até ali, estávamos na casa dos dezoito minutos de atendimento. Nas minhas contas, o tempo médio necessário para tirar uma pessoa equilibrada do sério é de vinte.

Naquela primeira consulta (a anterior), os funcionários também ajudaram a secretária. Sequer quiseram saber o nome da senhora. Esse é tipo de orientação que costumo passar, pois evito ao máximo qualquer relacionamento com as pessoas (iniciado por conhecer o nome de alguém). Verificaram as informações constantes no site (do FAQ já consultado pela senhora) e passaram para a secretária passar para a senhora.

Para a infelicidade deles, a situação agora era diferente: a senhora já havia acionado o escritório! O pedido que eles fizeram para ela já estava cumprido. Assim, a contragosto, solicitaram que a secretária pedisse o nome e o e-mail da senhora para que pudessem continuar a investigação.

Após a secretária voltava com as informações, solicitaram que ela coletasse também a data de envio do e-mail da senhora (já que haviam recebido diversos e-mails no período).

Após algum tempo, os funcionários foram lidar diretamente com a senhora. Eles não haviam achado o e-mail, mas não houve qualquer tipo de embaraço quanto a isso. Perguntaram se ela tinha certeza de tê-lo enviado.

– Claro que sim! Um instante, por favor. — A senhora era mais paciente do que as minhas estimativas.

Achou em seu smartphone o e-mail e mostro para eles. Com a data de envio em mãos, os seis funcionários do escritório iniciaram a investigação em conjunto. Acharam nos registros que o pedido havia sido “arquivado”. Um funcionário manifestou-se:

– Ah! Você enviou seus dados atualizados, mas não enviou o número do seu cadastro. Eu dei baixa por “falta de informações”!

– O site não dizia que precisava desse dado. Mesmo assim, por que alguém não me avisou? Por que você não entrou em contato novamente comigo, dizendo que estava faltando somente isso?

É como eu disse… Não sou preparada para lidar diretamente com pessoas. Aquela senhora já estava alterada. Não pensava em mais nada. Um monte de porquês de uma coisa tão simples tornar-se tão impossível invadiu sua cabeça. Mais uma mente sã passando para o lado do transtorno…

– Nosso procedimento é simples assim, senhora. Sem os dados necessários, não há nada que possamos fazer… Desculpe-me, mas é a nossa burocracia.

Desde então, mensalmente a mãe da nossa senhora avisa a nossa senhora sobre o boleto.

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Roger Varlan
CRÔNICAS

Explorador do cotidiado. Observador de comportamentos. Escritor de fins de semana (ou de quando dá). Pseudônimo. Foto: pexels.com.