Um último rugido

Nickolas Ranullo
CRÔNICAS
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9 min readApr 4, 2018
Foto: Lari Dias

Duas e meia da tarde. São Paulo. Verão. O céu azul, sem nuvens, fazia o calor castigar a cidade. Eu suava. Ela não chegava. Impaciente, busquei o celular no bolso e assim que digitei “onde você está?”, vi um táxi estacionar bem em frente ao prédio em que marcamos de nos encontrar.

Ela desceu do carro com o cabelo preso em um rabo de cavalo. Vestida com uma camiseta preta — eu, em outras situações, talvez pudesse julgar sobre como ela aguentava usar uma roupa escura com um calor daquele, mas eu, com a camisa social branca, a calça jeans escura e a bolsa de couro com a alça atravessada no peito, não era exemplo nenhum sobre roupas confortáveis nesse tipo de clima — e um jeans também escuro, ela logo me abordou com aquele sorriso que só ela tinha, antes de me dar um beijo.

— Desculpa, leão. Trânsito, você sabe como é — ela disse com aquele sotaque inconfundível que eu tanto gostava de ouvir enquanto jogava seus braços no meu pescoço e eu colocava minhas mãos em sua cintura.

— Sei, leoa, fica fria — eu disse sorrindo, pela presença dela e pelo pensamento de finalmente sair debaixo daquele sol. Um beijo, pra marcar mais um encontro, mais um reencontro— Vamos? — eu perguntei enquanto me afastava e pegava sua mão para entrarmos no prédio.

— Vamos, vamos.

Passamos pela portaria.

O hall, graças ao ar condicionado, já tinha um clima totalmente diferente. Não era gelado, mas era fresco o suficiente para que eu pensasse em nunca mais colocar meus pés na rua. Caminhamos até o elevador. O prédio não era dos mais novos, mas também não era velho. O carpete tinha um tom vermelho escuro que remetia também aqueles hotéis com cara de cenário de filme.

— A luz que bate aqui é incrível — ela comentou olhando para a entrada do lugar enquanto esperávamos pelo elevador.

— Você tem de ver o apartamento — eu respondi, sem esconder também um pouco da minha ansiedade.

— E como conseguiu a locação? — eu e ela faríamos um primeiro ensaio real juntos. A ideia de hoje é que ela me daria algumas dicas para trabalhos futuros, já que também era fotógrafa.

— Um jornalista jamais revela suas fontes, moça — eu respondi, sorrindo de lado.

— E é o apartamento de uma fonte? — ela questionou, chegando perto e me dando um beijo no pescoço assim que as portas do elevador se abriram.

— Será? — eu lhe dei um selinho. Na verdade, o apartamento era de um amigo meu que não estaria na cidade nos próximos dias e acabou me cedendo por dois dias. Favores antigos também podem ser cobrados.

— Não sei… — ela respondeu enquanto eu apertava o botão que nos levaria até o 21° andar — Mas enfim, tá nervoso? — essa era a minha primeira experiência com ensaios desse tipo.

— Um pouco — eu respondi, sincero.

— Fique não, leãozinho. Juro que te ensino direitinho — eu senti uma leve malícia em sua fala. Me limitei a sorrir e a lhe dar mais um beijo.

— Direitinho?

— Bem direitinho.

— Vamos ver, então — eu a encarei. Ela tinha alguma coisa que eu, desde a primeira vez que a vi, não soube bem decifrar. Talvez fosse um encontro de vidas passadas. Talvez fosse um encontro pra vidas futuras.

Um apito baixo e as portas do elevador voltaram a se abrir, agora já no nosso andar. Entramos no apartamento e, na hora que ela botou seus olhos lá, eu tive a certeza de que escolhera o lugar certo. As janelas, completamente panorâmicas, davam uma vista incrível para a cidade que parecia pedir para ser fotografada com aquele céu azul que lhe cobria e lhe casava tão bem — mesmo com aquela faixa cinza de poluição que se perdia no horizonte.

— Ca-ra-ca! — ela disse enquanto largava a bolsa no sofá e olhava mais os ambientes do apartamento. Eu aproveitei o fascínio dela pra começar a me preparar. Tirei a câmera e uma outra bolsa pequena que carregava as lentes que usaria no ensaio. Ela subiu as escadas para ter uma vista ainda melhor do segundo andar. O pé direito duplo trazia todo um charme diferenciado para o lugar — Que vista! — eu pude ouvir ela dizer enquanto terminava de ajustar a câmera.

— Não é?! —brinquei enquanto terminava de ligar a câmera e fazia uma foto da janela, pegando as silhuetas dos prédios.

Ela desceu as escadas de forma rápida, como se já tivesse se acostumado de vez ao lugar.

— E aí, já sabe como vai querer as fotos? — ela perguntou enquanto se sentava no sofá.

— Na real? — perguntei. Ela fez que sim com a cabeça — Eu pensei em muita coisa — eu disse rindo — Só não sei por onde começar, mas aceito sugestões.

— O começo é sempre um bom lugar, leão — ela disse sorrindo enquanto jogava a cabeça pro lado e tirava o elástico que prendia seus cabelos. Eu a olhei de lado, fazendo-a rir — Que foi? Não é verdade?

— É, leoa. É… — eu disse rindo e me apoiando no sofá pra lhe dar um beijo. Esse tratamento, de leão e leoa, até poderia enganar quem nos visse uma primeira vez. Achariam que era alguma troca de apelidos carinhos, mas… Não era bem assim. Ela, de fato, era uma leoa. Leonina, é bem verdade. Eu brinquei com ela sobre isso um dia e a brincadeira acabou ficando. Eu virei leão por… Bom, tem história que a gente guarda— Ainda sim, temos de ter algum ponto de início.

— Certo… — ela se levantou do sofá e começou a caminhar em direção a escada até que parou alguns passos antes dela. Os tênis foram tirados devagar. Eu entendi. O ensaio, por fim, tinha seu começo.

Ela olhou pra trás enquanto suas mãos começavam a tirar a camiseta que usava. Tudo era fotografado por mim.

A camiseta caiu no chão. Ela usava uma lingerie preta, de renda, contrastando com o tom claro de sua pele. Suas mãos buscaram pelo cabelo, enquanto ela seguia com o rosto virado, me olhando e, aos poucos esboçando um sorriso que a fez fechar os olhos. Sua beleza seguia me encantando.

Ela começou a subir a escada, devagar. As mãos agora buscavam o botão da calça, depois o zíper e então as bordas, para que ela descesse suavemente. Aos poucos, a calcinha preta também revelava-se. No final da escada, a calça encontrou o chão. Ela virou-se pra mim. Eu admito que, por alguns segundos, me perdi entre a ideia de apenas admira-la ali ou a de seguir com as fotos. Ela sorriu, mais uma vez e fez um sinal com a mão, para que eu a acompanhasse. O sinal sim, foi fotografado.

Eu a segui. A cada degrau que subia, uma rápido flash me passava pela lembrança.

A forma como nos conhecemos, acidentalmente — ou não — graças ao trabalho dela como fotógrafa. Um casal numa cafeteria foi o start de uma história que poderia até ser nossa, se eu não tivesse demorado tanto pra chama-la.

O passeio que começou com a intenção de fazer algumas fotos pela cidade.

A foto polaroid que parecia revelar o que já não parecia ser segredo.

As primeiras cervejas acompanhadas de risadas.

As mãos dadas com um encaixe que aconteceu de forma tão perfeita que parecia ter sido desenhado.

A subida pela Augusta que só parou naquela esquina com a Alameda Santos.

O primeiro beijo.

O fim da escada.

Quando voltei a mim, ela já estava sentada na cama, com um sorriso. Eu parei e me permiti olha-la mais uma vez. As cobertas, brancas, refletiam mais luz, fazendo com ela ficasse ainda mais em destaque. “Como se ela precisasse disso”, eu lembro de pensar.

— Vamos continuar, leão? — ela perguntou, me tirando do meu transe. Eu deixei meu olhar cair mais sobre ela. As alças do sutiã já aberto estavam caídas sobre seus ombros, a peça só não a havia deixado ainda por ela, que com um dos braços, evitava que isso acontecesse.

— Claro, claro — eu respondi, me armando de novo com a câmera.

Existem coisas que não se escondem. Nossos desejos revelaram isso desde o primeiro beijo.

Existem coisas que não deveriam se esconder.

O sutiã, preto, caiu sobre o lençol branco. Eu fiz poucas fotos, enquanto ela se mexia sobre a cama e sorri, quando ela novamente fez um sinal com o dedo me chamando. Um ensaio completo talvez ficasse pra mais tarde.

Desejo. Paixão. Um, acredito, talvez possa existir sem o outro, mas eles só são realmente aproveitados quando juntos, dentro de um encaixe perfeito e que pareceu ser escrito pra acontecer.

Nós. É o que nós éramos. Nós de duas linhas destinadas a se entrelaçar, como minhas mãos se entrelaçavam por seus cabelos, com as mãos dela brincavam com minha barba, como as bocas que se procuravam, se encontravam, se reencontravam, como os corpos em um encaixe que… Eu não precisaria sequer escrever para dizer que… Estava escrito desde muito antes de nos vermos.

Os beijos seguiam, apaixonados, carregando vontades inenarráveis.

Os risos e sorrisos, soltos, se divertiam com a suave dança dos corpos.

Os arrepios serviam pra mostrar que talvez tudo aquilo fosse mais do que um lance pele — quem sabe, talvez, fosse um lance de almas que se reencontram.

Os gemidos eram formas do desejo se manifestar. Por vezes baixos, ao pé do ouvido, com um gosto de quero mais — e queríamos tanto mais. Por vezes, mais alto, atormentaria algum vizinho que nunca soube o que é realmente se entregar.

As marcas na pele são uma assinatura. Uma marca física de quem marcou desde a primeira troca de olhares.

O prazer é nosso. Não pode ser uma coisa só dela ou só minha. Afinal de contas, éramos duas almas em busca uma da outra. Éramos dois corpos que pediam por mais (re)encontros desde o dia em que se encontraram pela primeira vez.

— Você é diferente — ela disse, rindo e virando-se pra mim, algum tempo depois e já com as vontades saciadas. Ao menos por enquanto.

Estávamos na cama. Ela deitada sobre o meu braço, os cabelos pretos jogados, mas ainda sim, arrumados. Ela tinha esse dom de bagunçar tudo ao mesmo tempo em que parecia arrumar tudo.

— Você não deveria pensar assim — eu disse, enquanto olhava pro teto, também sorrindo. As sombras da janela, vagarosamente, se mexiam, mostrando que o tempo, por mais que fosse contra a nossa vontade, seguiria passando.

— Ué… — ela devolveu, enquanto passava a mão no meu peito— Me dê um bom motivo pra que eu não pense assim.

— A gente costuma enxergar o que quer, de vez em quando, leoa — respondi, encarando aqueles olhos castanhos mais uma vez — Eu não sou diferente dos outros caras. Eu te falei isso antes, não? — ela me olhava como se eu falasse que o planeta Terra é plano ou qualquer outro tipo de absurdo.

— Disse — ela devolveu revirando os olhos — Eu só não acredito — ela seguiu dizendo com um sorriso desenhado naqueles lábios rosados e tão bonitos. Eu não resisti a dar um beijo.

— Você talvez veja isso um dia — respondi, enquanto olhava para aqueles olhos castanhos.

— Talvez, leão. Talvez… — ela piscou de um jeito lento, como se um sono chegasse — Mas eu espero que não… — ela terminou de dizer, enquanto eu passava a mão em seu rosto.

Os olhos dela se fecharam, um suspiro e pronto, ela caíra no sono. Eu achei a cena tão bonita que, de forma discreta, consegui alcançar a câmera no criado-mudo e fiz uma foto. Os cabelos pretos sobre o lençol branco. A pele clara iluminada pelos últimos raios de sol do dia. A boca rosada. Eu botei novamente a câmera onde estava antes. Eu a olhei mais uma vez.

— Eu também espero que não, leoa — eu disse, baixinho, como se fosse uma oração, antes de também dormir.

O tempo passou, vocês sabem. O tempo sempre passa. A minha quase oração não teve efeito. Ela descobriu, um pouco mais tarde do que eu esperava, que eu era exatamente o que tinha falado tantas vezes que era: um cara normal. E ela merecia e sempre merecerá mais que isso.

A vida dela continua, assim como a minha, mas já não andam juntas como um dia eu escrevi ou como pensamos que um dia teriam escrito. Destino? Não… Só destinos diferentes, por fim.

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Nickolas Ranullo
CRÔNICAS

"Não digam a minha mãe que sou jornalista, prefiro que continue acreditando que toco piano num bordel".