Um barco, um homem e uma antiga saudade

Ivan Bonillo
CRÔNICAS
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3 min readApr 18, 2017

Georgia On My Mind ecoava através daquela vitrola, que ele havia ganhado há muitos anos. Era uma herança de seu querido pai. Por ela, discos de grandes artistas como Dylan, Floyd, Stones e Janis haviam passado. A única coisa que não havia passado era a tal da saudade. Era como se ele os tivesse conhecido pessoalmente. Por vezes ele se pegava imaginando como teria sido ter tomando um drink com Janis Joplin, jogado uma prosa fora com Bob Dylan ou ter convidado David Gilmour para tomar uma café naquela sala com cheiro antigo. Deveria ter sido algo divertido, pensava ele em seus dias mais felizes.

Mas aquele era um dia diferente. Um dia incomum na vida quase real de um homem normal. Pela janela de seu quarto de pensar, lotado de livros, canecas e outras pequenas coleções de uma vida que um dia já fora a que ele queria, ele via, entre tantas outras coisas que facilmente o deslumbrava (como uma criança esperançosa com a chegada de seu tão esperado brinquedo) um velho barco ir embora pelo oceano afora.

Assim como ele próprio, o barco ia, somente ia, sem mesmo saber por onde. Apenas navegava calmamente rumo a algum lugar desconhecido em meio a tantos pensamentos e lembranças que ele se esforçava para esquecer, mas nunca obtivera sucesso.

O homem observava — com certa dificuldade — o barco se tornar cada vez menor a medida em que se afastava do porto daquela pequena ilha. Porque deveria-se dizer que o mesmo acontecia com a sua alma. Simplesmente ia partindo aos poucos naquelas águas salgadas. Ultimamente ele vivia perdido em suas ideias que boiavam em sua mente, tendo por companhia uma velha xícara de café azedo, com gosto de óleo de motor.

O sol forte da manhã por vezes costumava arder seus olhos, mas isso não mais importava. Nada dói mais de que a dor de uma saudade. Saudade de quem, assim como o barco, foi para sabe-se lá onde, e sabe-se lá quando — e se — irá voltar. Se num dia chuvoso e nostálgico como um filme de péssimo grado, ou onde você se esforça para não dormir antes do fim, no início de um verão alegre e promissor como um beijo de chegada ou orgulho de uma conquista.

Ah, aquele mar, aquela janela, aquele café. Existiria alguém em sã consciência capaz de desaprovar tal triângulo amoroso? Conduzido pela levada da voz inconfundível de Ray, o homem finalmente decidira sorrir. Sorria de desgosto, de prazer, de alegria. E seu sorriso ia longe, assim como aquele barco, assim como a voz de Ray, em sua mais completa solidão imersa na multidão anônima das palavras silenciosas que ele jamais foi capaz de escrever, os acordes abriam caminho para as mais belas expressões e sentimentos de que se tem notícia.

E ao final de cada tarde, assim como as nuvens iam embora calmamente — como uma mãe que sai sorrateiramente do quarto do bebê em direção à sala após finalmente conseguir colocá-lo para dormir-, abrindo os portões do horizonte ao longe para que o barco pudesse seguir em diante, em sua jornada eterna de ir e vir, sem jamais sair do lugar,

Um novo homem nascia, a cada dia.

E mais um sorriso clareava aquele quarto. Por mais que ele negasse. Por mais que ele afirmasse o contrário. O sorriso de saudade daquele homem era capaz de iluminar a terra, mas não aquele quarto. Não aquela alma perdida. Não aquelas histórias. Não aquela saudade.

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Ivan Bonillo
CRÔNICAS

Mineiro, viajante, narniano, sonhador e cronista de fatos aleatórios dessa vida nada alheia.