Um orelhão na esquina
O tempo nublado me dá a impressão de que vou esperar por toda a vida. A porta de madeira tem uns desenhos da mitologia grega. Fico imaginando o trabalho que deu para ser esculpida, antes que alguém a instalasse na entrada do sobrado familiar. Sinto falta de vê-la se abrindo à minha frente, seguida de um convite para entrar, subir as escadas e ficar à vontade.
Numa dessas observações para passar o tempo, olho para o lado e percebo o mesmo orelhão na esquina. Desbotado e abandonado, mas ainda ali, como na primeira vez em que toquei essa mesma campainha, com o nervosismo de quem tem dúvidas se a estratégia daria certo. Naquele dia, me chamou atenção e arranquei um riso ao dizer que o bairro tinha um quê de arcaico nesses tempos pós-celular.
Não é mais a farmácia do senhor Valter que divide a calçada com ele. Ia lá e pisava na balança de ponteiro antes de entrar aqui. Conferia meu peso por um prazer nostálgico daquela máquina antiga. Também era um disfarce antes de comprar o que me impedia de povoar o mundo. Atravessava a rua sem me preocupar com o tempo, como faço agora.
Vejo uma igreja com gritos e pessoas engravatadas no lugar da antiga drogaria. Parece que o dono cansou de trabalhar e resolveu aproveitar o resto dos dias no interior do estado. Sorte a minha que nunca mais vou precisar da salvação do antigo comércio. O peso está em dia e por aqui não devo mais correr riscos de gerar herdeiros. Uma mulher de saia se apoia no cano azul do orelhão e distribui uns papeizinhos aos poucos pedestres que passam por ali.
Ouço passos e um barulho de chave dando voltas. As figuras mitológicas se afastam de mim quando a porta abre para dentro e aqueles olhos castanhos evitam me encarar. A caixa de papelão tem tudo o que faltava. Um casaco marrom com a foto do Belchior sorrindo, o suporte para latinhas de cerveja com as cores do meu time, umas camisas sem estampa compradas em liquidação, livros técnicos, porta-retratos. Noto que um deles foi meu presente de aniversário do ano passado, pergunto se ela tem certeza e aceito a negativa.
Chaveiros, mascotes, bonés, um cobertor roxo, o velho quadro com a foto do Al Pacino dançando tango. Lembranças. Quase derrubo a caixa, estava pesada. Bem mais do que imaginava.
Coloco tudo dentro do carro e ouço uma despedida seca com uma batida forte, mas acidentada, da porta. O barulho é seguido de um silêncio brutal de uns três segundos antes da chave girar e os passos afastados selarem nossos destinos.
Fecho a porta do passageiro, abro a do motorista, dou a partida. Quando giro o corpo para colocar o cinto de segurança, olho para o outro lado da rua. O orelhão ainda está lá. Sozinho, em frente à igreja. Acelero e vou embora.