Vivendo no século passado
Vamos supor que o caso que a seguir seja verdadeiro, para refletirmos sobre a serventia da lei.
Uma moça, nos seus vinte e poucos anos, muda-se do interior para Porto Alegre afim de cursar a faculdade; é muito dedicada aos estudos e, naturalmente, também se diverte e tem seus casos amorosos pelo campus.
Tudo se complica com uma gravidez indesejada e para que a lei, baseada em uma moral que já não se sustenta, não lhe force a interromper a vida para se dedicar a uma criança, procura ajuda do médico de longa data da família, a fim de provocar um aborto de forma a não se comprometer.
Importante notar que na ação do médico não houve nenhuma espécie de interesse pessoal, não foi questão de dinheiro. O que houve foi compreensão, amizade, respeito pela decisão e vontade de servir a uma amiga, de livrá-la de uma situação terrível.
Acontece que a sua intervenção foi desastrosa, a moça tem complicações médicas e lá vem a lei, os regulamentos, a polícia, os inquéritos, a imprensa e berram: criminosos! irresponsáveis! impediram que nascesse mais uma pessoa para aborrecer-se com a vida!
Berram e levam o médico para os autos, para a delegacia, para os depoimentos, para a fogueira da opinião popular que defende o direito à vida entre uma garfada e outra do churrasco de costela de boi.
O médico, homem humilde, temeroso da leis, amedrontado com a prisão, onde nunca se imaginou, comete suicídio.
Agora a reflexão: não é estúpida a lei que, para proteger uma vida provável, sacrifica duas? Talvez três, caso a moça não venha a se recuperar. De que vale essa lei?
*** Texto adaptado da crônica A Lei, de Lima Barreto, escrita em, pasmem, 1915.