A dose certa
Todos já tivemos um amor para a vida toda. Que afinal, nem era amor, nem duraria tanto.
Ou um vício, que nos enterra vivos. É difícil chegar à superfície, embora alguns poucos ainda consigam cavar na direcção certa.
Há dias em que a pilha de dívidas parece vencer o saldo bancário e o salto pela janela do oitavo andar parece razoável. Mas então, basta que o João mude o nome, troque o endereço, queime a identidade, delete o perfil.
A fome também nos define, enquanto testa novas proporções entre a carne e os ossos, os sonhos e os pesadelos. Então há a esmola, o assalto, o trambique, a consciência; e mais um dia passou.
Já a doença é provação grave. E até para essa — algumas delas, na verdade — há remédio.
Num segundo, tudo muda.
Entretanto, camarada, não lhe posso mentir. Tenho observado — mesmo que por um ângulo demasiado pessimista — que a mudança nem sempre é justa e tende à schadenfreude.
Que se lixe! Se a vida nos atira limões, a primeira coisa a fazer é não repetir esse ditado idiota! Mas penso que é útil sorver o amargor e aproveitar cada gota.
É preciso viver
a ignorância que permite a esperança;
a esperança que aponta à fé;
a fé que imagina a utopia;
a utopia que alimenta o esforço;
o esforço que interrompe a inércia;
a inércia que nos rende ao desânimo;
o desânimo que ruma ao desespero;
o desespero que escurece o pensamento;
o pensamento que sucumbe à ignorância;
a alternância dos factores e os incontáveis produtos: o caos, impossível de dosar, sócio de cada gesto.
Arrisco afirmar que nada disso é bom ou mau.
Tudo faz falta ou sobra, a depender da dose.