Distraídos perderemos.

Dinho Lima
crónicas sem vista para o mar
2 min readJun 25, 2020

O cursor do editor de texto debocha da minha procrastinação, exibindo dedicação ao seu ofício com uma pontualidade invejável. Escrevo essa frase enquanto percebo ele esboçar um sorrisinho de canto de boca, agora a desdenhar da minha tentativa de usar meta-linguagem — isso de escrever sobre não conseguir escrever é patético. Apago os parágrafos que dariam origem àqueles bytes mal empregados.

Chegou um e-mail. Duvido que seja importante, mas corro para ele como quem espera a resposta para o grande enigma da vida. Não intenciono lê-lo.

Imagino o García Márquez de frente para uma Olivetti, a martelar com firmeza os primeiros caracteres de “Cem anos de Solidão”. Algumas palavras mais sortudas até sobreviveram, mas aquela notificação do Twitter fez o Gabo perder um Nobel.

Continuo a divagar e testemunho o momento em que Hemingway está prestes a ter o estalo sobre viver em Havana. Entediado, ele varre a tela do iPhone e descobre que é possível lamber o próprio cotovelo. “O Velho e o Mar” acabou sendo escrito por um outro sujeito.

Cervantes perdeu a luta para o teclado que nunca cuspiu um til. Kafka trocou a literatura pelas caixas de comentários. Hilda Hilst sucumbiu ao XVideos. Machado ainda escreveu uns contos, mas os haters o convenceram a desistir. Fernando Pessoa perdia um tempo enorme a recuperar senhas. Só o Bukowski — quem diria — seguiu firme na escrita; ele sempre preferiu o telefone fixo.

O cursor continua com aquele olhar.

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