O caso da pistola, do cão preto e da peruca loira.

Dinho Lima
crónicas sem vista para o mar
3 min readJul 24, 2020

Há alguns anos, um muro da Rua da Rádio era ocupado por um blog analógico. Pensei em descrever o autor como louco — é verdade que o conteúdo exposto fazia aquele colunista urbano destoar da maioria ao seu redor — , mas seria injusto, dado o comportamento dos que se declaram sãos.

A rotina,
o preconceito,
a opressão,
a violência,
a ganância,
a precariedade,
a injustiça,
a indiferença,
o abandono,
o silêncio;
estava tudo ali, rabiscado nervosamente de preto sobre pedaços de papel-cartão. Como é possível acordar todos os dias e repetir o mesmo ritual, que alimenta aqueles cartazes?

Talvez os anormais sejamos nós.
Ionesco, em O Rinoceronte.

Era simbólico que ele fosse ignorado, mesmo tendo periodicidade, consistência, contundência, forma e até alguma coerência, expondo aquilo à frente de um dos principais veículos de comunicação do país.

Não havia espaço para ele. Jornalistas são pagos para falar bem de alguém; os parcos centímetros reservados ao contraditório servem apenas para que editores possam dormir, sem a culpa pelo assassínio do pensamento crítico.

Não pude apurar o caso da pistola, do cão preto e da peruca loira. Cruzei com aquela personagem apenas uma vez. Ensaiei um contacto, mas felizmente percebi o quão desrespeitoso seria invadir a fronteira do seu país, demarcada e mantida a tão alto custo. Ou foi essa a desculpa que eu pude arranjar.

Dizem que ele foi um guitarrista famoso.
Dizem que ele mora na rua.
Dizem que ele até morou nos Estados Unidos da América.
Dizem que ele enlouqueceu.
Dizem que ele já morreu.

Estamos todos nesse hospício. É difícil de notar, pois há muitos modelos de uniforme disponíveis para os internos. Talvez seja o caso de recorrer aos que se vestem de outro jeito.

Reli o blog analógico do anónimo colunista urbano e pensei:

a loucura é um ponto de vista.

O senhor em questão realmente existiu. São diversos os boatos sobre o seu passado; já ouvi muito sobre ele ter sido um grande guitarrista e ter vivido no exterior. Até hoje, não estou seguro sobre o seu verdadeiro nome. O que se pode constatar e é digno de nota: em Maputo viveu um blogueiro analógico, que abriu mão da convivência com os outros seres humanos, provavelmente — como denunciavam os textos do blog — pela forma como eles o trataram.

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