Perdi o endereço.

Dinho Lima
crónicas sem vista para o mar
2 min readJun 23, 2020

Dia desses, senti um vazio invulgar.
Que falta me fazem aqueles números que o suor apagou do guardanapo.
Mas pior mesmo é apalpar os bolsos e não encontrar a utopia.
Vivíamos todos no mesmo “não-lugar” de uma impossibilidade inspiradora.
Fomos alvejados pela realidade: tiro certeiro! Nem deu tempo de sair no jornal.
O meu velho tio dizia, entre um gole e uma mentira, que ninguém deveria arruinar uma boa estória com uma verdade sem graça.
Não acho graça, nesses dias tão cinzentos.
Queremos voltar no tempo. Ao menos eu, quero.
Onde compro a passagem? Para onde vou?
Para quem eu disco? Já ninguém usa esse verbo.
Que fim levou a vitrola do meu pai e toda aquela música amarelada dos meus dias de pequeno?
Lembro do quintal, da cor do pitú, do canto do sabiá a competir com o Gonzaguinha.
Sabes chegar lá, motorista? Entra pela rua de barro e pára em frente a casa de muro baixo, onde há uma mangueira enorme. Mas vai devagar; deve haver meninos na rua; uns sem camisa, outros com, na disputa de alguma final de Copa do Mundo.
Lembro do Zico perder um pênalti.
Lembro que homens não podiam chorar. Havia pênaltis em que era permitido quebrar essa regra.
Lembro que as mulheres choravam por outras razões. Isso até que não mudou tanto.
Lembro que sábado era dia de uma alegria descabida.
E o domingo era dia de igreja, mas ninguém ia.
Aquele lugar, chamavam Brasil.
Não és desse tempo, motorista.
Deixa então eu explicar.
O Brasil é um preto, um pobre, um estudante, uma mulher.
Pau, pedra, João e José. Os brasis e o Darcy também.
Pedro esperando o trem.
E os baianos todos.
O Brasil é uma cachaça posta numa mesa de ferro, servida por uma tal Dona Severina, num bar calorento onde só tocam Roberto Carlos.
Aquele país já não há.
Ou ainda existe, mas é dessas coisas que ninguém publica na internet.
Podes encostar. Fica com o troco.
O Brasil costumava ficar aqui.

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