Entendendo o filme “A Bruxa” — Por entre o satanismo, ignorância e desprendimento

Emerson Teixeira L
Cronologia do Acaso
13 min readJun 22, 2023

Parte 1 — Qual o motivo da incompreensão?

É justo que eu deixe claro, antes de mais nada, que todas as informações inseridas nesse texto servirão para acrescentar na compreensão dos símbolos do filme. Mas isso não quer dizer que é preciso saber todas e mais algumas para entender. Quando eu fui assistir o filme no cinema, as pessoas vaiaram e faziam piadas, o que não deixa de ser lamentável e um desrespeito com os demais.

“A Bruxa”, logo nas cenas iniciais, deixa claro que irá inverter e desconstruir o gênero terror. Geralmente temos em filmes do gênero uma fórmula pronta, principalmente — mas não somente — no que diz respeito ao vilão da história: sempre colocam o demônio como causador de todos os problemas. Se não é o demônio, é aquele que não segue as normas padrões imposta pela sociedade. Talvez um psicopata, infiel, herege, ateu, cético…

Mas “A Bruxa” no primeiro minuto se recusa a aceitar essa condição e simplesmente diz “não” ao espectador. “Não, vocês não terão essa fórmula. Vocês verão agora o que acontece quando um filme de terror tem como o seu grande vilão o Deus que muitos de vocês amam”. Pronto, foi justamente por essa inversão que o filme causou tantos espantos. Inconscientemente todos na sala perceberam que o filme estava atacando a fé, com isso, todos aqueles que acreditam em Deus se sentiram, de certa forma, afetados. Se sentir afetado assistindo esse filme é completamente normal, o problema é quando o nível de incompreensão atinge o tamanho monstruoso e aparecem pessoas rejeitando de todos os modos o filme e, como escrevi anteriormente, agem com desrespeito, brincando nas sessões e prejudicando a experiência de pessoas que, como eu, estavam boquiabertos com a quantidade de informações transmitidas.

Parte 2 — Idade Média e o sobrenatural

Vamos começar com um momento crucial da história da humanidade, principalmente quando relacionado com a religião: Idade Média. A igreja católica, ao contrário do que se pensa, não se tornou extremamente poderosa e influente de uma hora para a outra. Até atingir uma base incrivelmente sólida, existiram diversos problemas e fatos que impediram o seu avanço total.

A mescla com as religiões politeístas contribuíram muito, de diversas formas, para a construção do que temos hoje nos conceitos da igreja. Principalmente na postura de atribuir tudo aquilo que é desconhecido como sendo do demônio ou satânico.

Entre a Alta e Baixa idade média aconteceram bastante mudanças. A Europa estava em pleno declínio à beira da total loucura. Existia uma urgência, a vida simplesmente era sufocada por essas mudanças e descentralização, seja política e de crenças e como esses dois fatores se relacionam entre si.

O trabalhador, preso a sua terra — lembrando que a “escravidão” dá lugar a “servidão” que, a grosso modo, se trata do homem escravo das suas próprias terras, ele quer estar preso e isso se deve a uma série de interesses, incluindo a própria proteção — tinha a expectativa de vida muito baixa, portanto a ideia de ser feliz em uma próxima vida era muito mais real do que acreditar que poderia, algum dia, ser feliz nessa vida terrestre. Se analisarmos friamente a religião hoje em dia, inclusive, percebemos que a ideia de vida eterna vêm aos poucos mudando, há, hoje, uma supervalorização da vida aqui na terra; A ideia do famoso “carpe diem” vai de desencontro com o que prega a bíblia, que deixa muito claro que o nosso propósito real é a próxima vida.

Além da vida dos trabalhadores ser extremamente vinculada com a religiosidade, o medo movia as famílias também. Tudo aquilo que estava ao redor das suas terras era o local onde o mal existia. Não à toa a crença em seres fantásticos, bruxas, demônios, espelhos mágicos etc. Só os guerreiros e, principalmente, o clero, detinham o poder e coragem de ir além e lutar contra essas forças do mal. Percebam que, ao impor esse medo do sobrenatural, a igreja controlava tudo e todos.

Voltando às famílias dos trabalhadores, existia muita superstição, por exemplo: se um corvo pousasse na sua casa, com certeza eles atribuiriam isso a aproximação da morte. Você, caro leitor, deve se lembrar que aparece um corvo no filme “A Bruxa” em uma cena crucial, não é? Essa cena é justamente o pontapé para uma série de mortes que acontecerá na família.

Agora que mencionei o corvo, pense nessas possíveis interpretações sobre pequenos detalhes do cotidiano na época como um animal, floresta, enfim, e tente encontrar no filme alguns desses elementos. Em “A Bruxa” tem a floresta, corvo, coelho — que, em suma, representa vida e está atrelado também com a curiosidade principalmente após o lançamento do livro “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carroll — e, por fim, e talvez mais importante, em determinado momento, na floresta, existe uma referência direta à “Chapeuzinho Vermelho“. Essa referência acontece quando a “bruxa” aparece para Caleb, extremamente sexualizada, e o beija. A resposta para essa referência pode ir de encontro com a origem do satanismo. Explico a seguir:

Parte 3 — Satanismo

Em plena Idade Média, um grupo do Sul da França contestou corajosamente ou insanamente a igreja e vários dos seus conceitos. Inverteram alguns valores e, por isso, são considerados por alguns pensadores como os primeiros hereges da história. Esse grupo ficou conhecido como “cátaro”. Eles foram a sociedade secreta mais relevante da Idade Média e, inclusive, preste bem atenção pois vamos fazer aquele jogo de relacionar com o filme novamente, chamavam a Igreja Católica de “Igreja dos Lobos“. No filme a família acredita que o lobo pegou o bebê Samuel, portanto, diante a essa leitura, podemos trocar o lobo pela igreja/religião. A fé monstruosa e desequilibrada ataca como um câncer e vai sugando cada alma boa e pura que existe naquela família. Claro, difícil é saber o que seria uma “alma boa”.

No conto clássico de Chapeuzinho Vermelho, a menina caminha por entre a floresta e tenta, de todos os modos, escapar das garras do lobo mau. Como se quisesse fugir dessa prisão e ser livre. A aparição de uma bela mulher com capa vermelha no filme não é por acaso, há outra inversão de valores: Caleb é a menina frágil e Chapeuzinho esconde um lobo em sua veste. No mesmo tempo que essa cena deixa algo aberto: Talvez, de fato, tenha acontecido uma relação sexual entre Caleb e Thomasin e o lobo seja a representação fiel das angústias do menino em lidar com o gozo.

Continuando a história do satanismo, é preciso concluir que a inquisição foi criada justamente por causa dos Cátaros. Como uma forma de combater aqueles que pregassem contra qualquer coisa que a Igreja afirmava. Houve, inclusive, uma cruzada apenas para converter os Cátaros, o problema é que a distinção entre eles e os católicos era impossível, parte daí a frase “Matai-os todos, Deus reconhecerá os seus!”.

Bem, na Idade Média temos a formação da contradição, mas é no Renascimento que o Satanismo ganha forças. É preciso ressaltar, inclusive, que para a Igreja absolutamente tudo que a contrariasse era considerado Satanismo, mas isso acontece até hoje em dia, imaginem na época.

O Renascimento, como o próprio nome sugere, surge para combater a Idade Média e uma infinidade de opressões, esse desprendimento provém do conhecimento. O homem passou a direcionar a sua atenção para as filosofias e artes, o que evidentemente sempre libertou a humanidade.

Foi no Renascimento que surgiu uma importante linha da filosofia chamada “Renascimento Humanista” ou “humanismo”, que basicamente coloca o homem como centro do universo. É de se notar que nesse tempo já havia grandes questionamentos sobre Deus, principalmente relacionado a sua onipotência, onipresença e onisciência. Além do mais, era só ler a bíblia e perceber que havia uma diferença entre o Deus do Velho e Novo testamento, um se relacionava intimamente com o ódio e o outro com o amor infinito.

Todas essas questões aproximaram a figura de Satã do desprendimento. Shaitan, do hebraico, significa adversário. No filme “A Bruxa” a mãe se compara com a mulher de Jó. Resumidamente, na história bíblica de Jó, ele é uma isca para uma prova de que o amor do homem é verdadeiro e infinito. Satã fala para Deus que se tirar tudo do homem, então ele perderá a sua fé. Mas Deus prova o contrário com um homem amável e dedicado chamado Jó. A mulher de Jó clama para a revolta do marido para com Deus, mas ele se mantém mais calmo.

Então sua mulher lhe disse: Ainda reténs a tua sinceridade? Amaldiçoa a Deus, e morre. Jó 2:9

A mãe, no filme “A Bruxa” também perde a sua fé, após o desaparecimento e morte de três filhos. Mas o pai se mantém distante, relacionando a sua dor constantemente com a vontade de Deus. Na época isso era algo altamente comum, porém hoje, com os nossos olhos, todos sabemos que as coisas que acontecem, incluindo a própria praga que assola a plantação, poderia ter sido resolvida de outras maneiras, principalmente se não houvesse a insistência. Mas aí entra o conhecimento, hoje a psicologia nos mostra o que é “histeria coletiva”, “epilepsia” e outras doenças que estavam extremamente vinculadas com demônios. E, nesse ponto, “A Bruxa” incomoda muito, pois existe essa verdade exposta de todos os maus que a religião causou nas famílias devotas da época.

Voltemos ao Renascimento… Satã, por questionar Deus se tornou um símbolo imediato de algo que o humanismo pregava. E, a partir dessa filosofia, começaram a existir outras linhas de pensamento, incluindo o próprio satanismo que vai ser modificado no século XX com Lavey.

Parte 4 — Entendendo “A Bruxa”

Primeiro é importante ressaltar que as bruxas, na Idade Média, eram na maioria mulheres. Essa classificação era colocada naquelas que faziam remédios caseiros, se rejeitavam a casar, eram muito bonitas e despertavam desejos em homens de famílias, enfim, tudo isso fazia uma mulher ser condenada à fogueira por ser bruxa. Elas passavam por uma série de torturas e eram obrigadas a confessar o seu amor pelo demônio.

Então a bruxaria, assim como o satanismo, está diretamente ligada com o desprendimento. E o filme de 2016 usa isso para compor a ideia principal do roteiro: Não se trata de um filme de terror e sim um drama sobre a opressão religiosa, preconceito para com a mulher e ignorância.

A ignorância é a ferramenta que dá espaços para a manipulação e a única coisa que pode salvar um ser desse demônio — o maior de todos — é o conhecimento. Portanto, sim, Thomasin é uma bruxa. Ela é a única, de toda a família, que está envolvida com a sexualidade e não teme isso, que está consciente dos acontecimentos e não fica atribuindo qualquer desastre a culpa e vontade de Deus. Ela está extremamente preocupada com a vida e o “agora”, mesmo com as limitações da época, ela é livre no seu interior.

O filme, só a título de curiosidade, não se passa na Idade Média, mas sim na Nova Inglaterra em plena formação dos Estados Unidos. A floresta e o medo imenso do desconhecido estão presentes.

Após a família ser expulsa da colônia, é perceptível que todos da família saem do julgamento rapidamente, seguindo o pai. Thomasin é a única que hesita algum tempo antes de seguir a sua família.

Depois disso, temos uma cena que mostra a visão da garota — uma câmera subjetiva — olhando os portões sendo fechados para a sua família. Eles são expulsos pela visão religiosa extremista, que é tão grande que vai de desencontro com a própria religião.

Momentos depois a família adentra a floresta, algo extremamente proibido e perigoso, o lar dos monstros e demônios, eles estão em busca de um pedaço de terra para sobreviver. Mas todos aqueles conceitos de proteção, relação com o sobrenatural sobrevivem — Thomasin, no final do filme, fala para o seu pai que ele é um péssimo caçador, que ele só sabe cortar madeira, isso prova a mente direcionada e necessidade de proteção. É curioso notar a ironia, pois Black Phillip, no final do filme, mata o pai diante as madeiras que ele cortava constantemente, como se estivesse entregue a única coisa que sabia fazer, além de orar e entregar-se a Deus, no mesmo tempo que esquecia que tinha uma família para guiar.

Se Jó tinha uma propriedade farta, a família em “A Bruxa” é o contrário. A provação acontece de forma distorcida, eles estão a beira da loucura, fome e desespero. Em uma terra completamente nova, o terror com o auxílio da trilha sonora acontece durante todo o tempo. Nós não sentimos medo, mas adentramos em um mundo particular de fragilidade. A natureza se torna má e poderosa demais.

Os olhares do Caleb para os seios de Thomasin é a representação fantástica do desejo incestuoso que existe entre eles. A aceitação por parte da irmã e o descontrole por parte do irmão. Mas, claro, o desejo é visto como uma maldição e Thomasin, só pelo fato de ser mulher, é considerada bruxa por desenvolver-se. A menina se controla de todas as maneiras possíveis, segue todas as regras, mas, no final do filme, por um breve momento, se desvia desse caminho e tudo desmorona. Sua família, incrédula, atribui a ela todos os males do mundo.

Cena crucial é quando Thomasin encontra o seu irmão perto de um lago. Os dois estão atarefados e Thomasin percebe os olhares maliciosos, no entanto acolhe o irmão em seus braços antes de se proclamar como sendo a bruxa para a irmã mais nova. É questão de segundo para relacionarmos isso com a autonomia e ousadia da menina em confirmar o olhar incestuoso. Ela afirma com propriedade, dá os detalhes e intimida ambos irmãos, causando um desconforto. Lembrando, o fato de ser ou não bruxa é uma metáfora e qualquer cena que sugira algo mais explícito serve apenas como uma distração.

Pouco tempo depois Caleb foge com sua irmã para a floresta, eles se perdem e acompanhamos Caleb e o seu encontro com a “bruxa”, em uma forma bem sensual, como se completasse todos os seus desejos mais íntimos. O desejo nunca foi um problema real da humanidade, mas pode se tornar quando a crença a proíbe ou cria uma série de limitações. Nesse caso, a culpa passa a ser gigante e consome o ser. Isso é o que acontece com Caleb na floresta. A capa vermelha — cor associada automaticamente ao sexo, paixão etc — traz a ideia de que, sim, houve algum tipo de relação entre os dois irmãos, mas Caleb não aguenta a culpa, é fraco demais para ser um bruxo e, consecutivamente, livre.

Quando Caleb retorna para a sua casa, Thomasin o encontra nu. Quando ele desperta e surta, os seus movimentos e feição remetem ao gozo, ao prazer extremo, é possível perceber que em diversos momentos o menino se abraça, como se o seu corpo estivesse envolvido com as palavras sem sentido, no mesmo tempo que existe uma tentativa de redenção, como se quisesse ser aceito. O menino ficou preocupado e questionou o seu pai, logo no início do filme, sobre qual seria o critério de Deus para escolher os bons ou maus.

A mãe da família, para mim, é a personagem mais conturbada e fraca, ela praticamente não existe. Em alguns momentos fala com alegria sobre a época que tinha a idade da filha mais velha, mas sempre se mostra muito abatida e fragilizada. Como se existisse muitos arrependimentos. É a mulher que nunca teve coragem de se libertar, por isso é possível perceber uma clara inveja da sua filha Thomasin. A mãe revela que estava ciente das “insinuações para o irmão”, mas nunca tomou providência. Talvez ela tinha medo de que a menina tentasse conquistar o seu marido.

Quando a mãe morre, a única morte que Thomasin provoca, de fato, ela está em uma posição muito sugestiva, em cima da barriga da filha. Simbolizando uma troca de papéis, como se tivesse se tornado a filha ou prestes a realizar o que sempre quis, mas nunca teve coragem. Thomasin, a partir da morte de todos os membros da família, se torna todos eles, a coragem e desprendimento da família.

Chegamos na parte final e é justamente a qual, geralmente, as pessoas mais se confundem. Bem, vale ressaltar que a primeira coisa que Thomasin faz após matar sua mãe é tirar o vestido. Esse vestido, que a cobre durante todo o filme, visivelmente a sufocava. Ela começa a sua liberdade ai.

Depois segue o Black Phillip e vai procurar, finalmente, as respostas.

O bode no filme é a representação do demônio. Baphomet é sempre revelado com uma cabeça de bode e ele significa algumas coisas, principalmente relacionado com dualidade. Bem e mal, luz e trevas, homem e mulher, enfim, o feminino e masculino tem uma importância gigantesca para o final do filme. A mulher está diante da sua liberdade, mas não sabe o que fazer ao dar o próximo passo, portanto precisa entrar em catarse, conhecer os seus limites.

Ela seguindo o Black Phillip representa todos os espectadores que esperam ansiosos por respostas. E quando isso acontece, o filme o faz com maestria. Primeiro que focaliza apenas no rosto da Thomasin, afinal, ela é a protagonista dessa mudança. É quando começa um dos melhores diálogos da história do cinema.

Reparem que Black Phillip pergunta o que ela quer e dá algumas sugestões, principalmente relacionado a comida — pois passava fome — e liberdade. “Ver o mundo“. Thomasin deixa claro a sua posição e diz que não sabe escrever, ele responde, com sua voz arrepiante, que guiará as mãos da menina. Essa cena deixa claro que a protagonista está diante de uma mudança devastadora, fruto da sabedoria. A cena final, onde acontece um “ritual”, é outra alusão ao rito de passagem. A menina flutuando é uma vida leve, sem amarras e proibições, ainda fica diante uma árvore, fazendo referência a Lilith que, diz a teoria da conspiração, poderia ter sido a primeira mulher de Adão.

A cena final é arrepiante e, em meio a uma estranheza gigantesca, é possível sentir uma felicidade. O espectador desavisado chora e os mais atentos sorriem. “A Bruxa” é um dos melhores filmes da história e uma verdadeira junção de elementos históricos e filosóficos. Vai ao desencontro da fórmula e o padrão, assim como o tema estudado, e consegue provar que o terror mora nos lugares mais improváveis.

Obs: esse texto foi originalmente publicado em 2018 no site Cronologia do Acaso.

--

--