Em busca da vaca perdida

A inútil e fracassada procura sobre como e quando vaquinha passou a significar financiamento coletivo

Felipe Caruso
Crowdfunding Brasil
5 min readMay 24, 2016

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Na pesquisa para o conteúdo da próxima edição do curso Crowdfunding e Economia Colaborativa (bit.ly/cursoCrowdEcoColaborativa), comecei a me perguntar como “vaquinha” passou a significar juntar dinheiro de várias pessoas para um fim comum.

A primeira e mais difundida explicação vem do livro O Bode Expiatório, do professor Ari Riboldi, que tem o propósito de apresentar e preservar a origem, a história e o significado de palavras, expressões, gírias e ditados populares com nomes de animais.

Segundo a obra, a origem do termo vem de duas manifestações formadoras da identidade nacional: futebol e jogo do bicho. Diz o livro que, em 1890, o barão João Batista Viana Drumond encaminhou à Prefeitura do Rio de Janeiro a proposta de ampliar o jardim zoológico da cidade. Para financiar a obra, pediu a permissão de explorar jogos lícitos no local. A licença foi consentida, desde que os jogos fossem baratos e fiscalizados pela polícia. Foram liberados o bilhar, o carteado e o novo jogo dos bichos.

Cada visitante, ao pagar a entrada, no valor de um mil-réis, recebia um bilhete com a figura de um animal impressa. Acima do portão de entrada do jardim, escondido dentro de uma caixa, o barão colocava o retrato do animal do dia, escolhido previamente por ele de uma relação de 25 animais. Diariamente às 17h, a caixa era aberta e quem tivesse o ingresso com a figura do referido animal recebia o prêmio de 20 mil réis, ou seja, 20 vezes o valor correspondente à entrada. Eis a relação dos bichos com o correspondente número:

1- avestruz 2- águia 3- burro 4- borboleta 5- cachorro 6- cabra 7- carneiro 8- camelo 9- cobra 10- coelho 11- cavalo 12- elefante 13- galo 14- gato 15- jacaré 16- leão 17- macaco 18- porco 19- pavão 20- peru 21- touro 22- tigre 23- urso 24- veado 25- vaca

O jogo foi um sucesso imediato. Logo, as pessoas compravam vários bilhetes e só compareciam ao zoológico no horário da revelação do bicho do dia. Cinco anos depois, a prefeitura proibiu a prática, mas já era tarde demais. O jogo do bicho já tinha se espalhado pelo Rio de Janeiro e pelo imaginário popular de todo Brasil.

Ainda de acordo com o livro, em 1923, tempos anteriores à profissionalização do futebol no Brasil, a torcida do Vasco da Gama resolveu estimular o time juntando dinheiro e premiando os atletas de acordo com o resultado das partidas. A maior recompensa era em caso de uma grande vitória sobre um adversário tradicional ou da conquista de um campeonato: 25 mil réis, ou o número da vaca no jogo do bicho. Dai teria surgido a famosa "vaquinha". Hoje, inclusive a premiação dos atletas de futebol é chamada de "bicho".

Adorei a explicação e de fato futebol e jogo do bicho deram origem a diversas expressões populares como “deu zebra”, pelo fato do animal não estar entre os 25 do jogo. A origem de "vaquinha" no jogo do bicho também é citada nos dicionários Houaiss e Aurélio.

No post do blog Palavras e Origens, do professor Gabriel Perissé, em que ele faz referência à explicação do professor Ari, no entanto, vi um comentário que me deixou com a pulga atrás da orelha (Essa expressão é mais fácil de se imaginar a origem).

O comentário do Edison Junior me levou a pensar que a origem do termo devia ser mais ampla e anterior à relatada no livro do professor Ari. A hipótese da influência brasileira por meio da linguagem futebolística citada pelo professor Gabriel tampouco me inspirou confiança. Fui atrás da expressão em espanhol “hacer una vaca”.

Há registros da expressão em diversos países da América Latina, como Uruguai, Chile e Argentina. Descobri que existe até uma plataforma de financiamento coletivo no México que se chama “Hagamos la Vaca” e eles explicam assim a origem da expressão.

Os vaqueiros levavam o rebanho para pastar e às vezes precisavam se refugiar por causa do mau tempo. Eles, então, matavam uma vaca para comer durante o período. Quando voltavam, juntavam o dinheiro equivalente à vaca para pagar o patrão.

Achei a explicação ao mesmo tempo muito localizada e inespecífica para explicar seu uso e influência em vários países. Continuei a busca.

Encontrei uma pista no site da prefeitura da cidade espanhola de Almadén e fiquei animado. Uma origem secular na península Ibérica poderia explicar a ampla disseminação pela América Latina. A expressão lá tem significado um pouco diferente. É uma refeição compartilhada entre familiares e amigos.

Há diferentes versões sobre a origem e até grafia: “vaca” ou “baca”. A mais plausível é que teria surgido na prisão de trabalhos forçados da cidade. A hora do almoço os presos paravam o que estavam fazendo e compartilhavam a refeição. Era a “hora de vacar”.

É possível imaginar a expressão em metamorfose ao longo dos anos mantendo sua origem no compartilhamento, mas convenhamos que é um salto imprudente dizer que estaria aí a origem de "vaquinha" como financiamento coletivo.

Fiquei confuso e perdido depois de tantas histórias. Pensei que essa seria uma boa hora para ouvir o que professor Ari achava disso tudo. Mandei um e-mail, e ele pronta e gentilmente me respondeu:

A origem de expressões é sempre tema controverso. Faço pesquisa sobre o tema há anos. Tenho 6 livros publicados. A cada dia me surpreendo com novidades. Quanto mais leio sobre o assunto, mais descubro que sei pouco. O aprendizado é constante. O mesmo ocorre com a etimologia, o primeiro significado de uma palavra, genuíno, original. Procuro ser cauteloso. Há muitas versões duvidosas, outras falsas circulando, dadas como definitivas. Procuro oferecer ao leitor todas as versões. Não se trata de algo pacífico, que possa ser comprovado por documentos, como se fosse um registro formal, com certidão de nascimento(…) Posições extremadas sobre o tema da origem de expressões é algo que não recomendo para ninguém. Estranho os que querem fazer correções, por exemplo, de ditados populares (Quem tem boca vai a Roma ou vaia Roma e outros), querendo dar versão mais erudita à forma popular e coloquial de expressão. Tempo perdido, discussão inútil, pois não se deve corrigir a linguagem do meio popular, manifestação autêntica de uma cultura

Muito obrigado, professor Ari! Percebi que minha curiosidade pela origem de vaquinha dificilmente será saciada e que de fato é inútil. Como sempre, aprendi a conviver com a falta e a ver a beleza da dúvida…

A não ser, é claro, que você saiba a resposta ou tenha uma pista sobre a origem de "vaquinha" e vá colocá-la aqui nos comentários ;)

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Felipe Caruso
Crowdfunding Brasil

Jornalista, consultor de crowdfunding e capacitor de fluxos. Foi coordenador de comunicação do Catarse e repórter na Folha de S. Paulo