Essa tal transição de paradigma

Téo Ferraz Benjamin
Crowdfunding Brasil
6 min readJun 5, 2017
Banksy sabe das coisas

Outro dia em um evento da nova economia, um amigo me perguntou o que era a tal “transição de paradigma”. Ele via uma lista de projetos e conseguia dizer quais faziam parte dessa “nova era”, mas não conseguia articular o porquê. E quem pode culpá-lo?

O mundo está mudando e isso não é novidade para ninguém. E eu concordo que estamos vivendo uma transição profunda. Mas o que isso significa, de fato? E será que significa a mesma coisa pra todo mundo? E mais: significa alguma coisa para quem não está dentro do discurso?

Vale a pena pensar coletivamente sobre essa narrativa para construir algo realmente estruturado. Não acho que precisamos trabalhar em cima de uma definição perfeita, mas acho que é melhor ter dez definições diferentes para trabalhar do que nenhuma. Por isso, ofereço aqui um ponto de vista dentre muitos possíveis e gostaria de iniciar uma conversa.

O paradigma anterior

Cada momento da nossa história tem suas próprias questões e desafios colocados para a sociedade. Há um par de séculos, havia uma tensão sobre como gerar enormes quantidades de riqueza e acesso em larga escala a bens e serviços escassos em pouquíssimo tempo. A resposta para essas perguntas foi o paradigma industrial.

O paradigma industrial não é apenas uma maneira diferente de produzir bens de consumo. É uma nova forma de enxergar e organizar o mundo.

Está na raiz dos nossos sistemas educacional, de saúde, prisional, da maneira como produzimos, estocamos e distribuímos alimentos, dos nossos governos e de basicamente todas as formas de organização que criamos de lá pra cá. O paradigma é o sistema em si.

A ideia é criar cadeias de comando e controle, estruturadas na forma de hierarquias, e pisar no acelerador. O paradigma industrial é fortalecer as instituições, e reduzir o ser humano a uma engrenagem no sistema — uma engrenagem pequena o suficiente para que seu efeito não seja notável no resultado final e ao mesmo tempo simples o suficiente para que seja facilmente substituível.

Hoje é fácil falar mal da era industrial. Às vezes parece que todo o mal do mundo veio à tona ali. Mas ela não é ruim em si. Na verdade, ela não guarda juízo de valor. Foi uma resposta específica para um período específico.

Agora esse paradigma se esgotou.

O novo paradigma

O mundo já mudou. Os desafios são outros, as perguntas são outras e as tecnologias disponíveis também. Daí, emerge um novo paradigma.

Hoje os grandes desafios estão mais ligados à distribuição da riqueza e das oportunidades (como criamos uma sociedade mais justa), às mudanças climáticas (como convivemos juntos neste planeta) e ao futuro do trabalho (como repensamos os modelos de trabalho para que as máquinas estejam à serviço da humanidade sem que nossos sistemas sociais entrem em colapso).

É difícil definir esse novo paradigma, que ainda está em formação. Ninguém tem bola de cristal, mas parece que surge um modelo de organização para substituir o modelo industrial: as comunidades conectadas em rede.

E o que diabos isso significa?

Tentarei explicar o paradigma das redes usando um dos conceitos mais (mal) explorados nesse mundo da transição: a abundância.

Imagine que você trabalha com ouro ou batatas. Quanto menos ouro (ou batatas) as outras pessoas têm, mais valor tem aquilo que está na sua mão. Assim, cada pessoa que explora esse ramo de trabalho subtrai valor do seu produto e dos demais.

Agora imagine que você foi inventou a máquina de fax. Aquele aparelho tem valor literalmente zero na sua mão até que outras pessoas o comprem também. Afinal, você não compra um fax, mas sim o acesso a uma rede de comunicação entre pessoas. Cada pessoa que entra na rede gera valor para todos os participantes.

Esse novo paradigma tenta reproduzir o “efeito fax” de maneira ampla, criando os chamados efeitos de rede. O valor não está mais na acumulação de ativos em si, mas na conexão entre os pares. Cada ser humano deixa de ser engrenagem e passa a ser um nó único da rede.

O financiamento coletivo é um bom exemplo desses efeitos de rede. Os apoiadores se tornam também divulgadores, então quanto mais pessoas apoiam um projeto, mais pessoas potencialmente podem apoiar o projeto. Grandes projetos muitas vezes são criticados por “roubar a cena” nas plataformas sem precisar recorrer necessariamente ao crowdfunding, mas a verdade é que eles apresentam a dinâmica para novas pessoas, que acabam apoiando também outros projetos. Todos os estudos indicam que um projeto grande não suga valor dos outros mas, pelo contrário, cria valor para todo o ecossistema.

Abstração pura

Qual é a questão então?

O conceito de “mudança de paradigma” foi alargado quando passou a ser usado para praticamente qualquer inovação. Se tornou um conceito vago definido a partir de apenas alguns valores base. Cabem ali apenas palavras-chave, mas nada muito mais específico que isso. A transição fala em “sustentabilidade”, “consciência”, “cuidado” e “colaboração, mas não se preocupa em definir claramente essas ideias e nem em analisar criticamente quem fala sobre isso. A palavra “inovação” virou o gergelim no BigMac: ninguém sabe exatamente o gosto daquilo, mas está salpicado por cima da coisa toda.

Ocorre que abstrações puras acabam se tornando opacas e perdem significado, não apenas para a compreensão dos não-iniciados no vocabulário do momento, mas também para a coesão dos iniciados, é bom deixar claro.

E por que isso é perigoso? Um discurso pouco estruturado corre o risco de ser cooptado muito facilmente. É aquilo que em inglês chamam de washing. Basta pegar as práticas sociais, políticas, ambientais e econômicas mais nocivas do planeta, jogar as palavras-chave certas, pintar tudo de verde, jogar no liquidificador e pronto: sucesso instantâneo da nova era.

Foi o que aconteceu com o movimento ambientalista. Um (outro) amigo trabalha em um escritório de design que prestava serviço para uma das empresas envolvidas na tragédia de Mariana. Dois dias depois do rompimento da barragem, seu chefe colocou um panfleto da empresa em cima da mesa do meu amigo e deu a ordem: “pinta de verde”.

A ideia era fazer a empresa parecer sustentável. Mas enquanto rompimento de barragem for problema do designer, estaremos indo por um caminho muito perigoso. O sistema é muito, muito bom em se adaptar às novas narrativas.

A pressa é inimiga da transição

O mundo está mudando, sim. Mas ele está sempre mudando. Esse momento específico parece representar uma mudança mais radical, uma transição de paradigma de fato, mas apenas mais uma entre tantas na nossa história.

Para definir uma “transição”, precisamos definir um ponto de partida e um ponto de chegada — ou pelo menos uma direção mais ou menos clara. A partir daí, a questão para a transição parece ser: sistemas precisam ser pensados intencionalmente dessa forma. Mas como?

Sinceramente, não sei. Meu objetivo aqui não é oferecer uma resposta pronta, mas uma reflexão sobre o caminho.

Não precisamos concordar em tudo. Mas quanto mais alinhado estivermos, mais difícil será a cooptação (que já está em curso no mundo da moda, nos coworkings e no financiamento coletivo, por exemplo, e já está começando na política) e mais fácil será a compreensão de quem está, como o meu amigo, orbitando essas ideias sem realmente entender do que se trata.

Teremos que descobrir as respostas aos poucos. Se esse é mesmo um novo paradigma, então não é preciso pressa, mas cuidado e consciência para que possamos construir um sistema robusto e coeso, fácil de ser assimilado e difícil de ser cooptado. Um sistema que não é cool ou bonito ou “do bem”, mas justo, inclusivo e coerente. Esse me parece ser o grande desafio.

Uma mudança de paradigma não se faz para si. Ela é uma mudança em grande escala e só faz sentido no tempo longo. Se estivermos reproduzindo os mesmos sistemas de exclusão, mas com uma narrativa bonita de redes, ou se deixarmos outros fazerem isso tranquilamente, seremos irrelevantes na história.

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