Além do planeta silencioso, C. S. Lewis

Allenylson Ferreira
C. S. Lewis Brasil
Published in
7 min readOct 8, 2020

Quando falamos em ficção científica, pensamos em monstros extraterrestres invadindo a Terra, destruindo tudo que vê pela frente, tendo como inimigos a raça humana — e sempre em busca da nossa tecnologia. Ou também, futuros distópicos em que a máquina toma o lugar do homem, ou até mesmo quando a máquina é banida e os planetas habitados são governados por um Império, como em Duna — o elemento humano é mais marcante que qualquer outra coisa. O primeiro volume da Trilogia Cósmica de C. S. Lewis rompe com esses limites, e cria uma ficção científica baseada não no medo das criaturas extraterrestres, pois elas são descritas como criaturas boas e sem ambições malignas — aqui, a ameaça é o próprio homem, que ao descobrir novos planetas quer logo subjugar suas criaturas e explorar seu ecossistema e riquezas, tudo em nome da “humanidade”.

O Dr. Ramsom, personagem principal do romance científico, está caminhando por uma cidadezinha da Inglaterra quando topa com uma casinha e, sem imaginar o que encontraria, entra na propriedade e dá de cara com dois colegas de universidade, Weston e Devine. Logo sabemos que estes dois homens não são bons, pois estavam querendo forçar um garoto que trabalhava para eles a fazer algo do qual ele não queria. Ramsom tenta intervir, os ânimos se exaltam, mas ele é convidado a passar a noite ali, com Weston e Devine. Ele aceita o convite, porém mais tarde ele percebe que fora sequestrado.

Ao se dar conta de que estava sendo dopado e mantido preso, Ramsom tenta, com todas as suas forças, fugir — no entanto, acaba sendo vencido. Depois de levar uma pancada, acorda em um local estranho — num espaço metálico: uma espaçonave. Os antigos colegas de universidade haviam colocado Ramsom na espaçonave rumo à Malacandra; sua tarefa na viagem era servir como sacrifício para algum deus daquele planeta.

A viagem cósmica dura muitos dias, o narrador faz observações sagazes e de tirar o fôlego.

Pulsando com brilho e com um sofrimento ou prazer insuportáveis, agrupadas em multidões incontáveis e nunca mapeadas, surreais em sua claridade, flamejando em escuridão perfeita, as estrelas prenderam totalmente sua atenção, perturbaram-no, animaram-no e fizeram com que ele se sentasse.

Finalmente percebe que está numa viagem interplanetária, e faz perguntas aos colegas — que eram maus, ele sabia –, porém eles não respondem para onde estão indo, qual o objetivo, e manda-o calar a boca. No entanto, consegue arrancar alguma informação de Devine, que é menos ranzinza que Weston — e ao descobrir que estavam numa expedição cósmica, com destino a um planeta descoberto pelos dois, usado como sacrifício, questiona a Weston se aquilo era correto.

O infinito, e, por conseguinte, talvez a eternidade, está sendo colocado nas mãos da raça humana. Você não pode ter uma mente tão pequena para pensar que os direitos ou a vida de um indivíduo ou de um milhão de indivíduos tenham a menor importância em comparação com isso.

Weston era um cientista prático, muitíssimo preocupado com o futuro da humanidade, mas capaz de matar quantos homens fosse capaz para alcançar o futuro que ele tinha em mente. Provavelmente, a ideia de futuro importava mais do que, de fato, a vida dos homens — apenas um pretexto para alcançar o inalcançável, subjugar todos em nome da ciência, alcançar total poder — tudo em nome da humanidade, conceito abstrato demais para fazer Weston ter o mínimo de moralidade ou compaixão.

Quando finalmente chegam ao planeta, Ramsom se vê desesperado e foge assim que possível — a ideia de ser oferecido como sacrifício para algum sorn era demasiado terrível. Todavia, após fugir com medo de algumas criaturas, ele tem contato com outra criatura que surge das águas e trava conhecimento com ela, descobrindo que trata-se de um hrossa — e assim estabelece um companheirismo entre humano e uma criatura malacandriana. Como os conceitos de Ramsom e de todos os homens baseiam-se no medo diante do desconhecido, e pensando como homem, ele procura sinais de maldade, perigo, morte, exploração, mas nada encontra — os hrossa, ele soube, eram boas criaturas e não entendiam o que Ramsom perguntava. Por exemplo, perguntou aos hrossa se eles eram dominados pelos sorns, criaturas outras e que sabiam de coisas que os hrossa não sabiam, ou como faziam para procriar, alimentar os filhotes, etc. Ao que um dos hrossa responde a uma dessas perguntas:

Sem dúvida”, disse ele, “Maleldil nos fez assim. Como poderia haver o bastante para comer se todo mundo tivesse vinte filhotes? E como poderíamos aguentar a vida e deixar o tempo passar se estivéssemos sempre querendo que um dia ou um ano voltasse, se não soubéssemos que cada dia em uma vida preenche a vida inteira com expectativas e lembranças, e que estas são aquele dia?”

Com a resposta, descobre que Maleldil é uma espécie de criador — e Oyarsa, talvez, era um dos deuses de Malacandra. As descobertas de Ramsom em relação à língua malacandriana o deixava fascinado, assim como a vegetação daquele planeta, os costumes, a poesia dos hrossa, os rituais, etc.

Antes de qualquer outra coisa, ele descobriu que Malacandra era bela; e pensou como era estranho ele nunca haver especulado a esse respeito. A mesma imaginação distorcida que o levara a povoar o universo com monstros o ensinou a, de alguma maneira, nada esperar de um planeta estranho a não ser uma desolação rochosa ou talvez um conjunto de máquinas de um pesadelo.

Após esses eventos, Ramsom precisa encontrar-se com Oyarsa — e tenta adiar esse encontro –, mas chega um momento que não pode mais fugir. Durante a jornada rumo ao encontro do Oyarsa, Ramsom conhece um sorn e, mais uma vez, percebe que o seu medo era infundado. Para ele, era estranho ver criaturas de espécies diferentes viverem em harmonia, sem exploração ou tampouco rivalidade, algo que os humanos não conheciam o que significava. Para as criaturas malacandrianas, aquelas que fugiram do seu propósito era um hnau torto.

É um hnau torto que escurece o mundo. E digo mais. Não acho que a floresta seria tão reluzente, nem a água tão quente, nem o amor tão doce se não houvesse perigo nos lagos.

No entanto, eles entendem que é por haver perigo que as coisas boas são realçadas e aproveitadas como de fato são. Para os humanos, isto é loucura. Mas estas criaturas não temiam a morte nem o perigo, pois criam, acima de tudo, nos propósitos do Maledil. E haviam os eldils. Mas quem eram? O sorn explica a Ramsom:

Bem, isso é o que está acima de todos os corpos — tão rápida que está em descanso, tão verdadeiramente corpo que deixou de ser corpo.

Ou seja, espíritos ou fantasmas, como conhecemos em nosso mundo — mas benignos, note-se. Ramsom, na viagem com o sorn para encontrar-se com Oyarsa, aprende mais sobre a geologia de Malacandra, assim como a sua História. Também toma conhecimento de outra raça malacandriana, os pfifltriggi — criaturas que gostam de criar coisas. Malacandra, para os humanos Marte, é um planeta repleto de surpresas e criaturas boas, e pelo visto não há corrupção moral por lá — esta é uma das questões mais encantadoras do livro. Imagine uma raça que não sofreu a Queda, onde as criaturas vivem em harmonia umas com as outras e não há o ímpeto de serem melhores que as outras. Mas como chama-se a Terra na língua malacandriana? Thulcandra, o planeta silencioso. Ramsom fica a par sobre o que aconteceu com a Terra quando encontra-se, finalmente, com Oyarsa — quando ele é julgado pelo Oyarsa. Eis a explicação de como a Terra veio a ser um planeta silencioso e quem o tornou silencioso:

Ele se tornou torto. Isso foi antes que houvesse vida no seu mundo. Aqueles foram os Anos Tortos dos quais ainda falamos nos céus, quando ele ainda não estava preso a Thulcandra, mas era livre como nós. Ele tinha plano de entortar outros mundos, além do dele. Ele atingiu a lua de vocês com a mão esquerda, e com a direita ele trouxe o frio da morte para a minha harandra antes do tempo. Se pelo meu braço Maleldil não tivesse aberto as handramits e feito brotar as fontes termais, meu mundo estaria desabitado. Nós não o deixamos solto muito tempo. Houve uma grande guerra, e nós o expulsamos do céu, e o prendemos no ar do seu próprio mundo, tal como Maleldil nos ensinou. Sem dúvida ele está lá até agora, e nós não sabemos mais nada a respeito daquele planeta: ele é silencioso.

A parte do julgamento, em que os eldils estão em reverência ao Oyarsa como numa assembleia, e este começa a falar com Ramsom, assim como julga Weston e Devine, é a melhor parte do primeiro livro da trilogia. Não entrarei em detalhes, pois sequer conseguiria escrever sem dar spoilers.

A crítica do Lewis é sobre o cientificismo, uma visão de mundo que submete tudo a uma suposta ciência e ao nobre objetivo de progresso da humanidade — mas como bem enfatizou com o personagem Weston, os adeptos ao cientificismo estão mais empenhados em salvar alguma coisa da qual eles chamam de humanidade, invés de importar-se verdadeiramente com a humanidade de homens reais, que possuem vontade, desejo, escolha, e que não estão tão interessados em salvar a humanidade a qualquer custo, como eles. O que aconteceria se os homens desejassem habitar outros planetas e descobrissem que lá possuem criaturas nativas? Destruiriam sem pestanejar, tudo em prol do bem da humanidade. Se não hesitamos fazer isto com os da nossa espécie, escravizando, colonizando à força, explorando o meio ambiente, etc, o que não faríamos com raças radicalmente distintas e, aparentemente, perversas? Temos o péssimo hábito de fazer isso com o nosso semelhante. Dentro do cosmos não há vazio e silêncio, mas harmonia e comunicação, mas a Terra entrou em desarmonia com a Queda do homem — e ficou silenciosa, como se estivesse abandonada e fosse o único planeta com sinais de vida. Eis a questão. Se há vida além deste planeta silencioso, há um motivo para não ser habitado por homens. E se descobríssemos outras raças, levaríamos o mal e contaminaríamos elas também.

Além do planeta silencioso, C. S. Lewis, 224p., Thomas Nelson Brasil, 2019. Compre através deste link: https://amzn.to/3nF6hkS

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