Cartografia como prática de liberdade

CTMA tramas e tessituras
CTMA: tramas e tessituras
6 min readMay 9, 2017

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A elaboração de mapas artesanais no CTMA pode representar um ótimo exemplo da importância de um currículo integrado ao mundo real da vida, aquele que acontece com as pessoas, em seus lugares de vida. É importante trazer este aspecto à memória, porque não se promove saúde do campo sem compreender, viver, sentir e experimentar o ambiente no qual as pessoas se relacionam, trabalham e vivem. Aliás, não se faz saúde do campo sem representar aquilo que se vê, sem trazer à luz as diferentes formas de habitar um lugar, de agir sobre ele. É preciso revelar os processos e fazer nossos próprios mapas, nossos próprios caminhos.

Desta forma, os mapas do CTMA não foram feitos pela dimensão remota, longínqua, unilateral, que situa o observador “fora” do mundo em que a vida acontece. Este é o olhar desde acima, desde o dominador. No CTMA, desde abajo, o observador foi também observado, viveu, sentiu, experimentou, se territorializou (e vem se territorializando) passo a passo com os povos do campo e das águas, nas caminhadas, nas conversas, nas práticas de trabalho, no manejo com a terra, nos processos organizativos, na elaboração da pesquisa de campo. Dizer isso é dizer muito sobre a forma e o conteúdo dos mapas que mostramos agora, assim como é dizer sobre o olhar no qual estamos implicados/as.

Nesse sentido, estes mapas trazem à luz uma materialidade real e instantânea, no tempo e no espaço, complexa e comunicativa, que expressa um olhar diferenciado e descentralizado das narrativas cartográficas oficiais, vale dizer: hegemônicas. É preciso ter em mente que há pouco tempo atrás, os mapas eram “prerrogativas de Estado”. Havia um monopólio muito bem demarcado para a elaboração dos “mapas oficiais”: eram o Exército, os Serviços de Geologia, as Escolas Militares, os Institutos de Geografia, como o IBGE, os órgãos de desenvolvimento, enfim, os responsáveis pelo mapeamento e representação de nosso espaço — e foi por meio deles que apreendemos geografia, história, ecologia etc.

Quando se elabora, porém, mapas próprios, autorais, estamos quebrando este monopólio e fazendo da prática cartográfica algo revelador. Passamos a colocar no mapa aquilo que a gente próprio vê, aquilo que o outro sente e vive, e não aquilo que nos fizeram ver, que nos foi imposto como imaginário cartográfico, ou seja, passamos a ter autonomia sobre o nosso espaço a partir do momento em que o representamos com as nossas próprias linguagens e técnicas.

Estamos, então, diante de mapas originais que revelam basicamente o modo como as populações do campo se inscrevem na natureza, como usam, organizam e partilham sua base de recursos, a forma como elas dão sentido ao espaço e às contradições e dilemas por elas vividos. Mostram processos produtivos, aspectos do relevo, das águas, dos resíduos, da infraestrutura, dos equipamentos sociais dos assentamentos. Mostram a organização espacial das comunidades, as potencialidades e tecnologias sociais — e assim mostram também o potencial que os mapas têm para a intervenção planejada, para o planejamento ambiental, agrícola, o monitoramento das águas, para a saúde ambiental e seus métodos de intervenção.

É importante deixar claro que os mapas do CTMA estão diretamente envolvidos com o percurso formativo, cada qual com suas especificidades e tempos. Ao longo do Curso, foram muitos os tempos educativos destinados à interação com as técnicas de cartografia e de mapeamento/diagnóstico do território. Desde as técnicas de elaboração de croquis, de produção de maquetes, às aulas sobre topografia, escalas, curvas de nível, bacias hidrográficas, às oficinas temáticas de instrumentalização do mapeamento, como a oficina de GPS, onde se pode interagir com os aparelhos de GPS, discutir seu funcionamento, cuidados de manutenção, procedimentos de validação e calibração de dados, bem como resgatar elementos de geometria, do plano cartesiano e noções de cálculo aplicado com o uso do teorema de Pitágoras. Estas técnicas permitiram qualificar a abordagem territorial proposta no Curso, permitindo um mergulho mais fecundo e interessado dos educandos e educandas em seus lugares de vida, de convívio, de trabalho, de encontros, quer dizer nos lugares percorridos durante o tempo-comunidade. Desta forma, os mapas expressaram as etapas, caminhos e práticas de observação, registro, diálogo, troca e sistematização de informações, envolvendo o diagnóstico das condições de vida e das situações de saúde das populações do campo, ou seja, representam ao mesmo tempo o processo — da cartografia como linguagem-método do diagnóstico — e o produto — o mapa como linguagem-síntese do diagnóstico.

Caminho das águas de Fernando (CE)

Esta conjugação traz convergências muito importantes. É preciso ter em mente que os mapas foram produzidos na medida em que o trabalho de campo transcorria — e este sempre estava balizado pela preocupação mais ampla colocada desde o início pelo CTMA: educar no e com o território, para conhecer o território, e assim intervir. Esta motivação, no plano pedagógico, vai se aproximando cada vez mais da prática estratégica da vigilância em saúde, baseada no tripé informação-decisão-ação, ou seja, a cartografia serve, também, para o (re)conhecimento da produção da vida nos territórios camponeses, identificando e analisando as condições de vida para intervir sobre problemas de saúde ambiental dos assentamentos e acampamentos da Reforma Agrária.

Mapas artesanais, mapas comunitários, de quintais produtivos, mapas ambientais, mapas dos caminhos das águas, mapas das moradias, enfim: mapas da saúde do campo.

Nesta tessitura de que vimos tratando — que concebe o trabalho de campo como princípio pedagógico ou educativo — trata-se, então, de mapeamentos contextualizados, geograficamente situados, que revelam, por meio destas novas “peles” dos territórios, como são as dinâmicas de territorialização dos agricultores e agricultoras e suas bases de trabalho e produção. Sobretudo diante dos questionamentos: o que se faz e o que se tem nas áreas de Reforma Agrária, como é que se vive nesses territórios? Ao lado dos porquês destas questões, lançamos os mapas como um excelente exemplo para possíveis respostas, ou seja, para dizer de algumas formas através das quais a vida é, cotidianamente, produzida nos assentamentos.

A cartografia como método de pesquisar, de dialogar, gerou, desse modo, um olhar interessado para o território, vale dizer: uma ressignificação mesma da forma de olhar de cada educando/a para seu próprio espaço de vida. Afinal, foram mapas artesanais, mapas comunitários, de quintais produtivos, mapas ambientais, mapas dos caminhos das águas, mapas das moradias, enfim: mapas da saúde do campo. Produzidos de forma coletiva, colaborativa e dialógica, que de maneira simples proporcionaram a representação de vários agroecossistemas extremamente complexos, mas com uma variedade de aspectos, desde estradas, roças, corpos hídricos, limites de propriedade, instalações, dentre muitos outros.

Os mapas são sistemas linguísticos que comunicam os processos instituídos na sociedade por meio da representação do espaço, e quando tomamos a categoria território, seja como categoria da prática, seja como categoria analítica, o que importa é comunicar cartograficamente as relações de poder.

Se os usos são aspectos importantes do território, como o geógrafo Milton Santos sempre dizia, exatamente por mostrarem as intencionalidades de cada agente e o modo como cada um deles exerce o poder sobre o espaço, é nesta categoria que podemos pensar as diferentes formas de organização e manejo dos assentamentos, para darmos mais um exemplo. Isso tem uma implicação importante para as ações de vigilância em saúde, pois dependendo do uso que se faça do território, diferentes serão os processos saúde-doença observados.

Assim, os mapas foram traduzindo a diversidade de usos encontrados nos assentamentos, revelando uma variedade enorme de zonas de produção, de zonas de manejo, de áreas verdes, de águas, de lavouras comerciais e de subsistência, de espaços de moradia. Pode-se pensar a partir disso os diferentes riscos sanitários, por exemplo, os aspectos relacionados à alimentação, ao consumo e à comercialização. Este zoneamento, podemos dizer assim, foi concebendo e materializando, pouco a pouco, a ideia de agroecossistema, de subsistemas, de fluxos de matéria e energia (entradas e saídas), enfim, foi permitindo a classificação e a descrição das condições de produção e trabalho das famílias.

Por estes e outros motivos, se o desafio do CTMA é a ampliação/aperfeiçoamento da vigilância em saúde nos territórios da Reforma Agrária, sob um viés popular que privilegia a intersetorialidade, as ações articuladas em diferentes níveis e o diálogo de saberes, não podemos ignorar que o Curso, com intervenção em 42 territórios, ofereceu à sociedade um repertório cartográfico inovador para a caracterização de comunidades rurais — inclusive para que o SUS possa compreender quais e como os modelos assistenciais podem promover a saúde do campo e evitar as iniquidades nestas áreas.

Acreditar que os mapas são importantes aliados e interlocutores neste desafio é acreditar numa educação territorializada, inscrita no território e nos processos de territorialização das populações do campo. E neste sentido, os mapas trazem representações importantes que alertam para os sentidos, reivindicações e desafios trazidos por estes territórios.

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