Tragédia na Zona Sul
Se tivesse sido noticiado pelos jornais sensacionalistas da época, meados dos anos 1990, o fato que relato aqui provavelmente teria como chamada para a matéria a frase: “Tragédia na Zona Sul”.
Lembro-me bem daquela cena. É clara em minha memória, como se tivesse acontecido há poucos dias: gritos de uma mãe, três crianças em uma cama, sangue por toda a parte.
O inverno paulistano era rigoroso naquele longínquo mês de junho. O patriarca da família não havia chegado da sua labuta diária, enquanto a mãe, que talvez tivesse uma rotina ainda mais desgastante no cuidado do lar, desdobrava-se para manter tudo em ordem.
Muitas vezes não damos o devido valor ao trabalho realizado em casa. Mas imagine você que cada um dos três filhos estudava em um período diferente. E, em razão da violência, típica da periferia, e de uma grande avenida que precisava ser atravessada no caminho para a escola, aquela mãe tinha que levar e buscar cada um deles em seus respectivos horários, todos os dias, e o fazia sem reclamar.
Apesar da correria, a comida estava pronta sempre no horário exato, as roupas sempre limpas e secas, e a Tieta, cachorra que teve seu nome inspirado por uma icônica personagem de novela, era alimentada e medicada sempre com o devido rigor. Alimentada por que cachorros comem. Já os remédios tinham a necessidade de ser ministrados porque, em uma situação até hoje sem resposta, a valente guardiã do quintal da casa teve um de seus olhos perfurados. Mesmo assim, cega de um olho, Tieta oferecia amor, companheirismo e proteção àquela família. Certa vez um meliante desistiu de pular o muro da casa em razão da fúria daquele saudoso animal para com invasores de casas.
Tudo parecia bem, a casa estava arrumada e as três crianças, de banho tomado e bem agasalhadas, brincavam no quarto principal. A panela de pressão começava a chiar e o incipiente aroma que precede o sabor de uma sopa de legumes, jantar típico de uma noite de inverno, talvez já fosse percebido até mesmo pela vizinhança.
5 minutos era o tempo que a mãe precisava para um merecido banho quente e relaxante.
5 minutos bastaram para que o trágico evento acontecesse.
Até hoje a cena é relatada com angústia. Simultaneamente ao fechar do registro, a mistura de carne, macarrão e legumes que fervia na panela se deu por satisfeita. Estava pronta para ser servida.
O portão da frente rangeu e a eufórica reação da Tieta revelou a chegada do pai que se juntaria aos demais à mesa.
O silêncio atípico que vinha daquele quarto fez com que a mãe desconfiasse de algo. Ela foi conferir.
Deparou-se com uma das visões mais assustadoras de toda a sua vida. Tremia dos pés à cabeça e emudeceu por um instante até o primeiro grito de horror ser emanado. A sensação de que ia desmaiar foi o primeiro sintoma da queda de pressão, mesmo assim, com a força que só o mais puro instinto materno proporciona, ela se aproximou.
Os dois garotos menores estavam deitados com as barrigas repletas daquele líquido vermelho e pegajoso. A garota estava em pé ao lado deles, ela também trazia em seus braços aquele fluido aterrorizante e tinha uma ferramenta nas mãos.
A explicação não demorou a vir.
Inspirada por Doug Ross, personagem de George Clooney na série Plantão Médico, a líder do pequeno trio resolveu brincar de cirurgia e, por sorte, o instrumento portado pela “médica” era só um pente de cabelos que serviu como um bisturi cenográfico.
Todo o sangue não passava de ketchup e, por fim, tudo terminou bem, com exceção, é claro, dos lençóis e do bom humor daquela mãe.
Como testemunhei a história?
Eu era o caçula!