Perfis

A cozinha é o meu sossego

Ana Julia Zanotto
Cultura da Mesa
Published in
6 min readAug 29, 2023

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Luciana sempre gostou de cozinhar e, hoje, não se imagina em outra profissão | Crédito: arquivo pessoal Luciana Backi

Cabelo preso em um rabo de cavalo. Lenço amarrado na cabeça. Os tons de amarelo, vermelho, verde e laranja dão cor ao visual preto e branco dos trajes. As tatuagens também colorem a assadora. Flores e outros desenhos no ombro, que se perdem de vista sob a camiseta. Nos antebraços, duas cobras. Uma em cada. No direito, tatuada em preto. No esquerdo, em vermelho.

É no carvão e na brasa que Luciana Backi, de 43 anos, se encontra. Espetos cravados no chão, e peças de carne suspensas sobre o fogo. Temperos e mais temperos. Pratos que chamam atenção pelas cores, composições e criatividade. Nas mãos da chef, o churrasco vai muito além de um alimento tradicionalista. Na verdade, a própria tradição é colocada de lado. Tanto que até a maionese chega a desandar.

Antes que venha à cabeça a ideia de que Luciana não acerta o ponto da maionese, é melhor esclarecer: essa é apenas uma brincadeira que ela faz no seu perfil do Instagram — @desandouamaionese. “Aqui no Sul, a gente tem uma cultura muito enraizada de que a mulher faz a maionese, e o homem faz o churrasco, então, a partir do momento que eu decidi fazer o meu próprio churrasco, desandou a maionese”.

Apesar de parecer que já nasceu cozinhando, Luciana só entrou nesse universo em 2013. Quando engravidou do filho mais novo, Vicente, aos 33 anos, ela era estudante de Engenharia Mecânica. Pausou a graduação e, no momento de retornar para o curso, decidiu que não daria sequência. Adora números, mas não são eles que fazem seu olho brilhar. De ciência em ciência, ela deixou os cálculos e os gráficos e migrou para algo semelhante à química: a culinária.

Sempre gostou de cozinhar. Assumia a cozinha em jantares com amigas e familiares. Mas, certo dia, o filho mais velho, Arthur, quis variar o cardápio: “mãe, eu tô com vontade de comer um churrasco”. “Eu pensei ‘pronto, e agora como vou fazer um churrasco?’, porque sempre tinha alguém, sempre tinha algum homem envolvido, ou era o pai do Vicente, ou era meu irmão”, relembra. A partir do pedido de Arthur, ela colocou na cabeça que iria, então, aprender a assar churrasco.

Desafiada pela fome do filho, Luciana buscou entender de fogo, cortes, temperos, acompanhamentos, até que se encontrou submersa em brasa — e já não tinha como voltar. Havia encontrado o seu dom. Fez diversos cursos e passou a enxergar a cozinha como o seu local de trabalho.

Na procura por se especializar ainda mais, viu uma oportunidade de aprender com o cozinheiro Jimmy McManis, conhecido como Jimmy Ogro, que estava viajando pelo Rio Grande do Sul, no ano de 2018. “Eu mandei uma mensagem pra ele, perguntei se ia ter curso em Porto Alegre, e ele me disse que não ia, mas que queria ministrar um curso junto comigo”. Na tentativa de ser aluna, acabou virando professora.

E o anúncio avisava: “o fundador do Ogrostronomia e do Burgertopia, também apresentador do quadro de culinária de rua do Mais Você, Jimmy Mcmanis, desembarca em Porto Alegre nesta quinta-feira, dia 26 de julho, para ministrar um curso de churrasco. Este, em parceria com a churrasqueira amadora do projeto @desandouamaionese”.

De pouquinho em pouquinho, a guria vinda de Ijuí, no interior do Estado, foi ganhando reconhecimento. Em 2022, chegou em palcos paulistas para dar uma palestra para um público de centenas de pessoas. “Foi uma virada de chave bem significativa, porque eu fui reconhecida pela qualidade do meu trabalho, e isso não tem preço. Foi lindo, dividi o palco até com o Lázaro Ramos.”

Luciana não para quieta em um só lugar. Foi viajando para outros estados, trabalhando em diferentes cozinhas e analisando restaurantes que percebeu a dificuldade que existe na gestão de locais que comercializam comida. Por onde passou, foi encontrando “furos na operação” e viu aí uma oportunidade de se destacar. Atualmente, seu trabalho consiste em auxiliar na resolução de problemas e na organização de restaurantes. Com a gestão operacional, ela coloca em prática tudo que foi aprendendo ao longo de dez anos de experiência.

Frequentemente convidada para integrar equipes de restaurantes e trabalhar na gestão, Luciana não deixa oportunidades de lado. Do interior do RS ao interior de outros estados brasileiros, ela vai ampliando, cada vez mais, o cardápio pessoal. A melhor parte de cozinhar em novas culturas é a riqueza dos alimentos. “Eu procuro me adaptar com tudo que tem lá, eu procuro usar tudo o que é deles”. Ela explica que nunca leva nada daqui para as outras regiões, a não ser que seja solicitado. Não vê necessidade de transportar alimentos quando se tem tantas opções para inovar.

A última viagem da chef, para Rondônia, rendeu novos pratos, muito calor e uma vontade de sair do Sul e ir para o Norte, em definitivo. Ainda em 2023, ela voltará para trabalhar por lá, só virá a Porto Alegre para rever os filhos, mas, talvez, os leve junto com ela — para ficar.

Para quem gosta tanto das exatas, a vida peregrina pode soar destoante. Mas nem tudo precisa de exatidão. Ela sabe que conhecer lugares, pessoas e não parar em um único ponto pode ser melhor que enraizar-se. “Como a gente acha que a gente é grande né? Eu comecei a enxergar a minha vida com outro sentido, com mais leveza e ternura”.

Foi o churrasco que inseriu Luciana no mundo da cozinha, mas, hoje, ela vai muito além. “Aprendi a gostar mais da cozinha do que do próprio churrasco, eu entrei num universo pelo qual me apaixonei”. Ainda participa dos eventos de assado, mas não com a mesma frequência de antes. A exaustão com horas e mais horas de trabalho já não compensa mais. De madrugada a madrugada, o fogo de chão parece eterno. E como ela mesma reforça: “eu já não tenho mais meus 20 anos”.

De todos os perigos de lidar com o fogo, o pior, talvez, nem seja se queimar. Quando deixou a maionese desandar, Luciana se deparou com olhares, comentários e opiniões seguramente não solicitadas. “Eu encontrei muito apoio em algumas pessoas, mas é um meio muito machista, já escutei dos homens que mulher não podia fazer churrasco; e de algumas mulheres, que eu estava lá só para estar no meio dos homens. E isso é chato demais”.

Em um evento, na Capital, organizado por CTGs (Centros de Tradições Gaúchas), Luciana estava preparando peças de cordeiro para assar. Organizou o seu espaço, mas precisou se ausentar para trocar de roupa. Pediu que alguns assadores cuidassem dos seus espetos por instantes. Ao retornar, deparou-se com todos os seus cortes queimados. “Não cuidaram só para poder falar que eu queimei a carne”, desabafa.

Mas ela não se intimida. Sabe que esse é o seu lugar. E ela não está sozinha. São diversas as mulheres no ramo, buscando marcar presença em um ambiente majoritariamente masculino. “Temos um grupo que tenta batalhar para ter mais mulheres no meio, mas eu estou cansada de ser taxada como chata, porque eu tô lutando por uma coisa que é para todas elas e não só para mim”. Apesar de qualquer barreira, Luciana quer ver mais mulheres desafiando a tradição. E aconselha: “vocês podem ser o que vocês quiserem, sem seguir um padrão e sem baixar a cabeça para ninguém”.

Hoje, os sonhos da chef vão por dois caminhos: a família e a cozinha. Quer ver os filhos independentes e bem encaminhados. Assim como ela mesma levou algum tempo e alguns tropeços para encontrar-se, também não cobra dos filhos certezas e resoluções breves sobre os seus futuros. “Eu falo para o Arthur, não sabe ainda o que quer fazer na vida? Vai antes viajar, conhecer lugares, e depois tu decide”. Já para si mesma, ela quer ter o próprio restaurante, com comida de mãe. “Mas não a comida de qualquer mãe, quero que seja a comida da Lu mãe”, explica.

Nesse tempo de experiência, Luciana percebeu que gosta de trabalhar em equipe, fazer parcerias e compartilhar conhecimentos, mas também aprecia a solitude. Cozinha, para ela, é sinônimo de sossego. “É uma terapia, é como se abrissem as cortinas, e lá atrás só tem eu”.

E, como no teatro, a peça acaba, a cortina sempre fecha e o silêncio vem. Para a chef, a culinária também é um pouco assim. Não importa o público e o barulho, se são aplausos ou vaias, no final, a cortina sempre fecha, o show acaba, e ela sempre volta para a cozinha, para o silêncio, para o sossego.

Para ela, a culinária é um refúgio e uma terapia | Crédito: arquivo pessoal Luciana Backi

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Ana Julia Zanotto
Cultura da Mesa

Estudante de Jornalismo na UFRGS e estagiária do Núcleo de Conservação e Memória do Patrimônio Cultural do Palácio Piratini