Crônicas

Almoço, língua e silêncio

Ângelo M. Rockenbach
Cultura da Mesa
Published in
3 min readAug 29, 2023

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A mesa de casa quando éramos em seis. | Foto: Ângelo M. Rockenbach

De um lado, os homens. Do outro, as mulheres. Era a geografia do almoço lá de casa. Eu ficava numa ponta da mesa, com meu pai à direita, ao lado de minha mãe. À minha esquerda, meu avô acompanhado da vó, e na outra extremidade, entre a vó e a mãe, sentava minha irmã. Era o momento do dia em que os seis habitantes da casa compartilhavam o tempo e o espaço.

Minha irmã mais velha e eu vínhamos da escola, meus pais e meu avô do trabalho, e minha avó da cozinha, onde passara boa parte da manhã junto às panelas, batendo e abrindo massa, temperando saladas e cozinhando o aipim e o feijão. Em tempos em que ainda não ia à escola, meu prazer delinquente era roubar um naquinho da massa recém aberta pela vó, com a missão de passar despercebido. Na ponta dos pés, rasgava um pedaço, e fugia da cozinha, sujo de farinha. Dona Irmela soltava um comentário irônico: “acho que um gato entrou na cozinha e comeu a massa”.

À mesa, contava o episódio aos demais em alemão, que era a língua que prevalecia dentro de casa. Ou melhor, o dialeto, porque o alemão, na verdade, são vários. Se bem que o português também é, mas de uma forma diferente. Enfim, mesmo que o alemão me seja familiar, ele também é estrangeiro: não me pertence, afinal, ao cabo de anos, não consegui absorver mais que meia dúzia de palavras. Minha ignorância faz com que até hoje minha mãe interrompa meu pai quando este começa a falar em alemão: “fala em português para o teu filho entender”.

Quando nasceu, minha irmã mais nova passou a dividir a ponta da mesa com a Lívia, compondo o lado das mulheres, e rompendo a simetria e o equilíbrio entre os sexos da mesa. Aquela configuração não durou muito, porque logo depois o vô adoeceu, e se mudou com a vó para o terreno da frente, que era mais afastado do barulho da rua. Em algum momento — que passou despercebido por todos — fizemos nossa última refeição entre sete.

Para minha mãe, aquilo significou assumir a cozinha, lugar dominado pela vó e onde até então se sentia uma clandestina. Além do fogão, ela passou a ser a mestre de cerimônias do almoço, iniciando e intermediando as conversas, que variavam entre as notícias da vizinhança, do mundo, e os combinados a respeito dos compromissos de cada um para a tarde (minha mãe também era, e segue sendo, a agenda ambulante da família).

Era comum, no entanto, que os demais membros estivessem contemplativos (leia-se mortos de fome) e preferissem a ausência de conversas. Mas, mesmo no silêncio de uma refeição, se diz muito. Meu pai, por exemplo, homem discretíssimo, passaria um almoço inteiro sem dizer uma palavra, ainda que o seu silêncio não seja sinônimo de falta de comunicação. Ele tem a curiosa capacidade de se expressar sem usar frases, apenas com gestos, olhares, e uma ou outra palavra perdida — recebeu de mim o apelido de “mestre-da-comunicação-não-verbal”. Possui até um tipo único de repreensão muda. Quando algum de nós — quase sempre a Cê — não limpa muito bem o prato, meu pai usa o indicador para fazer um círculo no ar em direção ao prato com restos. Sem precisar dizer uma única palavra, se faz entendido por todos.

Minhas irmãs também possuem sua própria comunicação silenciosa à mesa. Quando assuntos mais espinhosos vêm à tona, ou mesmo um comentário inofensivo sai do script, o instinto natural da Cê é buscar o olhar da Lívia: um olhar que abre o canal para uma conversa telepática. Há uma cumplicidade entre as duas que ignora a minha presença como filho do meio. São duas contra um. E a mãe assume minhas dores: “vocês excluem o irmão de vocês”. Aproveito a onda para me fazer de vítima amigável: “deixa elas, mãe”.

Hoje, o almoço entre nós cinco só acontece nos finais de semana em que eu e a Lívia voltamos para casa. A rotina, entretanto, se tornou abrir metade da toalha, e colocar apenas três pratos sobre a mesa. Ouço os relatos, já sem testemunhar.

Assim como o alemão, a mesa segue sendo familiar a mim, mas já não me pertence como outrora. Diferentemente do alemão, contudo, não me sinto — ainda — um estrangeiro ali.

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