Crônicas

Análise da repetição

Vitória Garcia
Cultura da Mesa
Published in
5 min readAug 29, 2023

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Retrato de um domingo normal em família | Foto: Vitória Garcia.

Todo domingo é a mesma coisa e, ainda assim, é diferente.

O hábito que me identifica como brasileira é o de deixar as coisas para a última hora. Eu raramente sou a primeira na mesa, esse papel cabe à minha prima de três anos, Helena. Antes de lavar as mãos ela se senta à mesa e começa a preparar o café. A receita é simples, uma poeira de café solúvel e tanto açúcar quanto for possível antes de a mãe dela se meter e tirar a metade do açúcar que forma o “café” dela. E então ela é levada à pia para lavar as mãos, com relutância.

A minha casa é comum como várias outras em que cozinha, sala e mesa de todas as refeições partilham o mesmo espaço e a televisão oferece o som ambiente, todos os dias. E o domingo não é exceção.

Geralmente às cinco da tarde, minha tia mais próxima por parte de mãe, Clenir, se infiltra no espaço e oferece conselhos, receitas, opiniões e fofocas a respeito do que ela pode observar durante a semana. Ela sempre traz algo para o desjejum da tarde — eu sempre quis usar essa palavra, não conheço muitos sinônimos para café.

Às vezes é um salgado, às vezes um bolo muito doce, às vezes parece combinado, quando a minha mãe faz o bolo, ela traz o salgado, e vice-versa. Isso acontece há, pelo menos, um ano e meio. Mas eu não sei precisar com exatidão. Quando alguma coisa acontece há um bom tempo, parece que sempre foi assim. Mas não foi. Eu acho que a pandemia afastou muito as pessoas, uma reunião remota trava, é estática e até fria. No mundo real, sempre vai existir a simultaneidade, o calor humano, a resposta rápida e a risada alta.

Eu conheci minha prima por uma tela de celular e convivi com ela por meses usando máscara. Ela é minha vizinha. Mas é como se estivesse sempre ali, com a gente por mais do que só três anos, como se a tradição fosse antiga.

Quando elas chegam, trazem uma conversa paralela diferenciada. Desde a última “arte” da Helena, até a mais nova, a transição das fraldas ao banheiro. Todo domingo, mesmo que seja de maneira diferente, alguém acaba fazendo a mesa, posicionando as xícaras de cada um e pegando mais uma cadeira, porque o lugar da Helena é do lado da mãe dela, que se senta do meu lado, e nenhuma das duas pode trocar de lugar.

Neste domingo, ninguém cozinhou, e o bolo que minha tia trouxe é a sobra de todos os bolos da festa junina de sábado. Apesar da comida e da conversa sobre a falta de sono da filha dela, ela não cumpriu com o acordo silencioso e charmoso de fofocar sobre a festa. Achei estranho. Mas não me importei, eu estava lá, no coração da festa de família, a cozinha — a cozinha da casa dela, devo acrescentar. Sei das reclamações que ela fez, a opinião dela sobre os eventos da noite anterior não faz falta. Mas eu também sei que uma hora ou outra ela vai comentar sobre eles.

O silêncio dela espelha o silêncio do meu pai, Paulo. Do outro lado da mesa, sentado no lugar do meu irmão, meu pai assiste a um filme. Ele quase sempre está concentrado na tela da televisão, apesar da movimentação externa. Sua frase de efeito no domingo é a mesma dos eventuais feriados: “Hoje, vou trabalhar… só em casa!”.

Então, aquele silêncio é um dos poucos momentos de lazer dele. E eu sempre vou preferir o silêncio de domingo ao silêncio da semana. Esse silêncio é mais triste, cansado e frustrado com o trabalho. É sinal de coisa errada. Hoje, não tem nada de errado, quase nunca tem algo errado no domingo.

A interrupção vem do nada, mas eu sabia que ela iria perguntar quando prestasse atenção o suficiente para perceber que não sabia o que estava se passando ao seu redor.

“Que filme é esse?”, a minha tia solta e obriga o meu pai a responder.

“Van Helsing”, ela só pediu o nome e ele não daria spoilers.

Na cabeceira, minha mãe, Gleci, presta atenção em tudo, enquanto parece não perceber nada. A primeira letra do nome dela deveria ter sido C, igual aos seus quatro irmãos mais novos, mas ouviram errado no cartório.

O silêncio dela é normal, mas é quebrado pela presença da irmã. Ela pergunta se o bolo de aipim foi feito com aipim congelado, e ela responde que sim. E então minha tia observa: “E tu viu que não fica com gosto nem nada?” — A pergunta é retórica, merece o silêncio. Todo mundo percebeu.

Ao longo dos anos, eu reparei que entre todas as coisas que a minha mãe fala algumas tem um quê de sabedoria ancestral, pra não dizer um quê de verdade. Dentre todas as máximas, assim como todos na minha família, eu tenho as minhas preferidas. “Filho se cria pro mundo, e não pra ti”, escuto desde criança. “Quem tem boca vai a Roma”, bem mais popular, mas trágica, já que a minha segunda língua é inglês. “Vitória, tu ainda vai ser professora!”, aterrorizante no atual cenário da educação pública no Brasil. Ela mesma estudou para ser professora. A profissão não a deixou com medo, foi o cansaço. Além disso, duas crianças eram tudo que ela podia criar, depois de quatro irmãos.

Ao observar todos esses personagens lembro-me de outras conversas e histórias, saio do tema e penso que não os descrevi mais por medo de soar prolixa, uma vez que os conheço demais, tenho opiniões demais, tenho sentimentos demais, e reparo que não sei como fazer isso. Não sei por onde começar e nem como terminar. Nem sei se quero. O que força a minha mão é o meu pior hábito. E este me entrega algo diferente e igual a todos que fizeram uma tentativa honesta.

Toda vez que nos reunimos naquela mesa, naquele domingo, a cola invisível que nos une ali não é o significado de família, é uma tentativa honesta de manter uma conexão em família.

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