Crônicas

As esquisitas tradições da mesa do internato

Oberdan Schumann
Cultura da Mesa
Published in
4 min readAug 29, 2023

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O refeitório do internato | Foto: Instituto Ivoti

“Vem senhor Jesus, ser o nosso convidado, e tudo que nos dá, nos seja abençoado”. Não sou dos mais religiosos, mas nunca me esquecerei da oração da mesa, que ouvi mais de mil vezes — isso não é uma hipérbole — antes das refeições que tive nos meus três anos de Ensino Médio. Morei durante este tempo no internato do Instituto Ivoti, bem (e mal) acompanhado de outros tantos adolescentes, e todas as manhãs e noites escutávamos essa prece no refeitório.

A escola, de origem luterana, já havia passado dos 110 anos de existência quando lá estudei. Portanto é fácil de se imaginar que vários hábitos passaram de geração em geração durante este tempo. Havia uma série de regrinhas e costumes para a hora de comer, por exemplo.

– BLÉIM!

Era o som cansado e metálico do sino, que aparentava ter uns séculos a mais de existência do que a própria escola. Pendurado na frente do refeitório, ele era tocado algumas vezes durante o dia. Entre elas, essa batida solitária, às vezes até baixinha, sinalizava que a comida estava pronta.

Lá dentro éramos divididos em mesas com até sete pessoas. Nas pontas, sentavam os poderosos estudantes do 3° ano, além de duas mesas especiais que tinham como pontas Júnior, diretor do internato masculino, e a Dona Nora, diretora do internato feminino.

– Mas de novo chimia de banana? — reclamou o novato para mim, quando eu, já sentado na ponta, era expert em chimia de banana.

– Não reclame, porque hoje é dia de nata — respondi.

Nas terças e sextas-feiras tinha nata no café da manhã. Aprendi no 1° ano com os veteranos a melhor receita do mundo possível com os ingredientes que tínhamos à disposição: pão com muita nata e muito açúcar em cima. Talvez isso me custará alguns anos de vida lá pra frente, mas era um bom acompanhamento com o café, um pouco queimado, que nos era servido.

Um sistema de rodízio foi criado para que, a cada duas semanas, as mesas trocassem e todos tivessem o prazer de se integrar com todos ao longo do ano. Também havia uma ordem, em que todo dia uma mesa diferente se servia por primeiro. No dia seguinte, esta mesa seria a última, e assim por diante. No almoço, o refeitório funcionava como um restaurante para a escola inteira, então tínhamos liberdade para nos sentarmos com quem éramos mais próximos.

A janta variava mais que o café da manhã. Por vezes o cardápio oferecia algo mais reforçado, como macarronada, galinhada, até lasanha. Mas a janta preferida da gurizada era pão de queijo. Não só o pão de queijo era bom, como também tínhamos o costume de recheá-lo com doce de leite. Era uma mistura que eu não conhecia, mas foi amor à primeira mordida. Começamos a competir para ver quem comia mais pão de queijo na janta. Chegava a nove, dez, onze, doze… acho que isso foi determinante para, depois de um tempo, mudarem a receita do pão de queijo, que passou a ser duro e sem gosto. A competição acabou.

Com quase cem adolescentes morando juntos, é lógico que além das amizades havia muitos conflitos. Eu não era dos que brigavam, mas tomava as dores dos meus amigos. Então havia mesas em que eu não falava nada. Comia quieto e escutava as desavenças. Por coincidência, teve um dia que uma moça do terceiro ano, que não ia com a nossa cara, deixou cair o bule de café quente no meu colo. Acontece.

Em compensação, nas mesas legais, fazíamos barulho e algumas brincadeiras tradicionais do internato. “Buffalo Bill” era uma delas. Consiste em falar “Buffalo Bill” sem mostrar os dentes. Quem perdesse tinha que ir sacudir a toalha de mesa e fazer o também tradicional “rolinho” com ela. Depois, as pontas lançavam ao ar o rolinho de pano, às vezes acertando alguém por pura ocasionalidade.

Também forçávamos bastante a imaginação durante os anos para tentar dar significado à arte da parede, logo atrás do buffet em que nos servíamos. O que diabos o artista fez ali? Até hoje não sabemos. Mas afinal, esse é o objetivo da arte abstrata, não é mesmo?

Embora minhas palavras não sejam exatamente afetuosas com o internato, entendo que cresci muito como pessoa morando ali. Quando encontro as amizades que lá fiz, nossas conversas em algum momento passam pela Rua Pastor Ernesto Schlieper, 200, onde aprendi, entre outras coisas, que a comida sempre é mais gostosa quando compartilhamos a mesa com as pessoas que amamos.

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