Crônicas

Até o último respingo

Um ritual gastronômico nada gourmet

Ester Bertozzi
Cultura da Mesa

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A praça em frente ao Carmelito é ponto de encontro para saborear o cachorro quente. | Foto: Ester Bertozzi

Não era nem meio dia, e a fila já invadia a calçada. Quem atravessava a praça a caminho, podia sentir o aroma do outro lado da rua. É que nos sábados a disputa é grande e o horário é apertado. Para ter o almoço garantido, o prazo vai até às 13h30.

Jamais recomendada pelos nutricionistas, se trata de uma refeição de peso. Ainda mais, se acompanhada de uma Fruki guaraná. É o lanche tradicional do lajeadense, capaz de atrair moradores de municípios vizinhos só para fazer uma boquinha. Dentre os pontos turísticos da cidade — afinal de contas, existe algum? — o cachorrão Carmelito é daqueles que não se pode faltar. Na verdade, arrisco em chamá-lo de patrimônio histórico de Lajeado.

De maneira alguma, o seu modo de preparo é um segredo. Ao entrar no estabelecimento, é evidente. Uma vitrine em que sete pares de mãos trabalham numa linha de produção em massa. Logo em frente, uma fila de pessoas que transparecem ansiedade. Tem aqueles que coçam a barba, outros passam a mão na cabeça e batem o pé no chão. Todos atentos para realizar seus desejos, ou melhor, seus pedidos.

Do outro lado, o processo é veloz, quase que uma corrida contra o tempo. Anota o pedido, cobra o pagamento, tosta o pão, vai carne, recheio, maionese, prensa, embala. Ufa, pronto. Um processo tão rápido que até põe em dúvida a qualidade do alimento — mas só até a primeira mordida.

É um tradicional cachorro-quente feito por gaúchos, mas diferente. Ou melhor, diferenciado. Talvez sejam os ingredientes na medida exata, ou então a maionese artesanal que dá vontade de comer de colher. Não sei. Só sei que, de fato, é uma experiência gastronômica — mas não a ponto de render um story. Acontece que o modo de consumo não é tão gourmet assim. Como um ritual, é realizado tradicionalmente na própria lanchonete ou então na praça em frente. Quem vê a posição de longe, já sabe qual é a refeição da vez. Do lado de dentro do estabelecimento, uma placa explicita as regras de etiqueta da casa:

- Sente-se confortavelmente;

- Afaste os joelhos cerca de 50 cm;

- Incline a coluna para frente mais ou menos 45º;

- Segure o Carmelito com as duas mãos e apoie os cotovelos nas coxas;

- Saboreie até o último respingo de maionese;

- Coloque todos os guardanapos no lixo.

Um manual de instruções para ter a melhor experiência possível, pendurado pra todo mundo ver. Com direito a cara lambuzada de recheio e lambidas nos dedos para saborear até o último respingo de maionese. Aqueles que pecam na coragem retiram o pedido para levar. Quem sabe até comem com garfo e faca. Uma frescura.

Acho que já ficou claro que conto uma história de tradição. Nos anos setenta, era apenas um trailer estacionado na Praça da Matriz da cidade. Quarenta anos depois, veio o espaço físico em frente a mesma praça. Hoje, mais duas cidades do Vale do Taquari importam essa refeição para o seu cardápio.

E pra quem ficou com água na boca durante a leitura desta singela crônica, saiba que a mais famosa maionese artesanal não se limita ao interior. Agora, a meta é conquistar as prateleiras dos supermercados, Rio Grande do Sul afora. Difícil acreditar que lá pela capital ousam em comparar tudo isso com um mísero cachorro-quente do Rosário, né? Esse pessoal de cidade grande não sabe do que tá falando.

Até do outro lado da rua, o aroma do cachorro quente é sentido. | Foto: Ester Bertozzi

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Ester Bertozzi
Cultura da Mesa

Produtora da TV Band RS, jornalista em formação pela UFRGS