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Café da manhã na mesa itinerante

Vitória Garcia
Cultura da Mesa
Published in
7 min readAug 29, 2023

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De segunda a sexta-feira, Graciela e sua mesa de café da manhã podem ser encontradas no centro da Capital | Foto: Vitória Garcia

A rotina de Graciela é a mesma todas as manhãs. Ela acorda cedo, antes das cinco da manhã, e confere a previsão do tempo antes de sair de casa para mais um dia de trabalho. Se estiver chovendo, ela tem um dia a menos de trabalho na semana.

Após a confirmação de estabilidade nos céus de Porto Alegre, ela começa a separar os pães, bolos, salgados e a fazer o café que irá vender no centro da cidade. São pelo menos quatro térmicas cheias com água para o chá, café passado e leite (para quem gosta de café pingado), além de chocolate quente para os dias de inverno. Os grandes potes de plástico branco levam sua produção semanal de pães caseiros, bolos, salgadinhos de forno e cuecas viradas.

Há cinco anos, a professora Graciela Letícia Aldao da Silva completa sua renda com a venda de café nas ruas do centro da Capital. Graciela é uma mulher de 51 anos, com um rosto amigável e sorriso fácil, sempre pronta a conversar com quem se aproxima dela. Seus cabelos castanhos estão sempre presos e no seu trabalho ela veste um avental, que a identifica como cozinheira e que também usa para guardar seu celular.

Quando chega em seu ponto na Avenida Otávio Rocha, o sol ainda não nasceu, não há muitas pessoas andando pelas ruas e os feirantes estão iniciando a montagem de suas barracas. Os fregueses são poucos nas primeiras horas do dia.

Às 5h45, o local parece um deserto de concreto em que poucas pessoas se aventuram, e por uma questão de segurança seu marido lhe faz companhia até às 6h ou 6h30, e depois a deixa para ir ao seu trabalho. Enquanto ele dirige pela cidade como motorista de aplicativo, ela fica no Centro até às 9h vendendo o café da manhã de quem não teve tempo de fazer a refeição em casa.

De segunda a sexta-feira, Graciela monta uma mesa no início da avenida, com uma toalha xadrez vermelha e branca. Como uma mesa de piquenique, é ricamente adornada de delícias que muitos não têm tempo de cozinhar em casa. Seus fregueses são, na maioria das vezes, pessoas que estão indo trabalhar. Caso a chuva chegue de surpresa, o máximo que pode fazer para manter sua mesa intacta é abrir um guarda-sol. E ainda assim, ela corre o risco de perder seus clientes, uma vez que, em dias de chuva, as pessoas optam por chegar a seus destinos com maior rapidez usando carros de aplicativo.

Desde 2018, a entrada da Avenida Otávio Rocha é seu ponto de venda. Foi utilizado primeiro por sua nora, que morava no Centro. Amanda já vendia salgados aos seus vizinhos e fazia os anúncios de WhatsApp que tornavam a produção ainda mais reconhecida.

Agora, com a mudança do filho mais velho e da nora para Santa Catarina, é Graciela quem toca os próprios negócios há pelo menos três anos. Ela já fazia os salgados para vender há anos e também costura para fora quando necessário, para completar a renda da família. O ofício foi aprendido com o pai, que foi alfaiate, e deixou a máquina de costura como herança.

A sua formação de escolha é pedagogia, mas como tantos outros, Graciela perdeu o emprego em uma escola particular de educação infantil durante a pandemia de Covid-19. Ela afirma que quer voltar a dar aulas no futuro, que ama sua profissão e que é esse segue sendo seu plano. Mas no momento fica contente ocupando o espaço em que está.

O movimento

Durante seu trabalho, ela observa a movimentação de parte do bairro, que começa a acordar a partir das 6h30. Nesse horário, as padarias começam a abrir e os feirantes chegam e iniciam a montagem de suas barracas com frutas, verduras e legumes. Às 7h, o Mercado Público abre as portas e os carregadores de mercadorias começam a entrar e sair do prédio. E 30 minutos depois, as farmácias localizadas no entorno de Graciela já esperam a chegada dos seus primeiros clientes. Graciela acompanha essa rotina todos os dias e já está acostumada a falar com as pessoas que fazem parte da movimentação.

“As gurias da farmácia são minhas amigas, algumas param aqui e tomam um cafezinho e a gente conversa um pouco enquanto elas abrem”, explica. À sua frente há uma barraca de frutas de um feirante, o que traz mais segurança no início de suas manhãs. Ainda assim, ela garante que nada de ruim nunca lhe aconteceu. Apesar de já ter visto muito nessas manhãs, as pessoas que passam por sua mesa de café a reconhecem como mais uma trabalhadora — que saiu às ruas para se manter.

A partir das quartas-feiras a movimentação das madrugadas é diferente. E Graciela garante que se pode ver de tudo, por conta do funcionamento das casas noturnas, popularmente conhecidas como “inferninhos”. Ela nota que há um aumento no número de pessoas circulando pelas ruas do Centro antes do sol nascer, entre quarta e sexta-feira. “Tu vê de tudo! Gente passando mal, gritando, brigando, vomitando”. São imagens rápidas de seu cotidiano.

Contudo, a maior mudança que presencia diariamente não são as pessoas nas ruas e nem as obras de revitalização do Centro. Mas sim a atuação dos guardas municipais que fazem a ronda no bairro. “Tem uns que são mais caxias e outros que são mais tranquilos. Aqui no Centro é mais rigoroso em função da pandemia, muita gente foi pra rua. Eles estão fazendo o trabalho deles, mas a gente tá na rua pra trabalhar, porque as contas continuam chegando e tivemos que nos virar de outra forma”, explicou Graciela.

A refeição itinerante

No meio da correria, Graciela prepara os salgados para a viagem | Foto: Vitória Garcia.

Depois de horas de trabalho, um homem um pouco mais velho com uma pasta na mão, que se preparava para ir a um exame, para na frente da mesa e pede um bolo de cenoura e um café com leite. Contudo, ele quer saber como é o preparo, se pode escolher como vai tomar o café.

– Como é o teu café? Já vem misturado e adoçado? — O senhor perguntou curioso e interessado na mesa farta e bem posta.

– Não, eu tenho aqui café passado e leite, e também açúcar e adoçante. Eu misturo aqui mesmo e o senhor escolhe como quer fazer, se mais leite ou mais café, depende do senhor. — Graciela explica como costuma vender o café com leite, enquanto aponta para duas de suas térmicas.

– Ah, tá bom! Me vê um com um pouquinho mais de leite, então.

– Um pouco mais clarinho! E açúcar ou adoçante?

– Nenhum dos dois, sem açúcar. Açúcar deixa só para caipirinha! — Eles riem enquanto o café é preparado, e o homem escolhe um largo pedaço de bolo de cenoura com cobertura de chocolate.

– Mas pode misturar a caipirinha com mel também, fica muito bom! — Ela responde ainda rindo e passa o copo com o café quentinho ao homem que agradece e paga em dinheiro. Ele, então, se senta no banco de concreto ao fundo e tenta fazer a refeição com calma, enquanto as pessoas passam apressadas.

O homem parece um cliente esporádico, mas Graciela calcula que tenha em torno de 30 clientes fixos, quase diários. Alguns reclamam quando ela não vai ao Centro para vender seus produtos. Para ela, os atrativos de seus pães e salgados são os preços, além do carinho e do cuidado no preparo. “Tem mercado pra todo mundo”, ela diz. Também acredita que seu trabalho não rouba o trabalho do padeiro, nem dos cafés e restaurantes que servem os mesmos salgados que ela.

O diferencial é a forma como os prepara e vende, sempre conversando e sorrindo. Ela passa a conhecer tanto os seus clientes a ponto de já ter o café adoçado com duas colheres de açúcar e as seis cuequinhas viradas sem açúcar de Eduardo prontas, quando ele para na mesa. E enquanto ele a cumprimenta com um bom dia e se prepara para pagar, o pedido já está pronto para ser levado e consumido no trabalho. “De primeiro ele só comprava o café, depois que comprou umas cuequinhas, viciou. Sempre leva umas, aí já deixo tudo pronto quando vejo ele”, conta.

Em sua produção tem pão caseiro, nas versões integral e de leite; bolos, como o de cenoura com cobertura; enroladinhos, folhados e empadas, todos assados; cachorro-quente, que é montado com diferentes configurações (sem batata palha, sem ervilhas ou com tudo dentro), e as famosas cuequinhas viradas de cinquenta centavos, em duas versões, com e sem açúcar. Além das térmicas com café, leite, chocolate quente e água para o chá. E o pagamento por seu trabalho pode ser feito com dinheiro, cartão, ou via Pix, uma facilidade para ela e seus clientes.

Depois das 8h, as ruas estão cheias de pessoas, cada uma indo a algum lugar diferente. Os feirantes estão vendendo, os ambulantes já se estabeleceram nas calçadas e Graciela aguarda os ponteiros do relógio chegarem às nove para poder ir para casa. Uma de suas clientes conhecidas parou na frente da mesa e escolheu dois pães caseiros. Ela pagou e disse: “Que tu volte sem nada para casa!”, com um sorriso no rosto. Graciela Letícia, também sorrindo, agradece a cliente, enquanto faz um joinha com a mão, sinalizando que recebeu o Pix.

O desejo se repete em outras vendas. E à medida que sua mesa se esvazia, os seus clientes têm suas próprias mesas itinerantes montadas em diferentes lugares com os quitutes preparados por ela. Depois das 9h, seu dia acaba, mesmo que seja apenas o início da manhã. Ela chama seu marido e ele a ajuda a carregar tudo no porta-malas do carro. O descanso só vem aos finais de semana. Em casa a jornada recomeça arrumando, cozinhando e se preparando para a manhã seguinte.

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