Perfis

Chef não, cozinheiro

Cargos renomados à parte, Vítor comanda uma só cozinha

Ester Bertozzi
Cultura da Mesa

--

Em volta da mesa, uma xícara de café foi o convite para conhecer a história de Vítor. | Foto: Ester Bertozzi

Do lado de fora da janela, a rua barulhenta competia a atenção com a fala de Vítor. Rápida, veloz, ligeira. Mesmo sem querer, sua voz saía com pressa. Não como um movimento pensado, era apenas natural. Acontece que é nesse ritmo que ele costuma estar imerso, principalmente quando está trabalhando na cozinha. Quase que na velocidade em que pica legumes numa tábua, Vítor de Bem me contou sua história. Em volta de uma mesa, vinte oito anos de uma vida entrelaçada com a cozinha foram contraídos em uma hora de diálogo.

O espaço contava com o adicional de cheiro de gordura, garantido pela lanchonete logo ao lado da entrada do prédio. Por mais que não fosse sua casa, era nítido que Vítor estava na sua zona de conforto. Havia se adaptado ao ambiente, o que costumava acontecer com uma certa frequência. O apartamento não era seu, mas os pets do namorado faziam questão de acolhê-lo como se fosse.

Em direção à mesa da sala de estar, Vitor revelou um de seus maiores traços. Veio com uma xícara de café na mão com um tanto de leite, porque é só assim que eu tomo. Talvez pelo sol em câncer, talvez pelo ascendente em câncer, talvez porque cresceu com pai, mãe, irmã, todos cancerianos, Vítor gosta de servir. Foi demonstrando o afeto por meio dos atos de serviço que chegou até a cozinha — bem, é verdade que o fator “gostar de comer” também teve uma parcela de influência.

Por mais que trabalhar não seja sinônimo de prazer para Vítor, seu ofício lhe proporciona momentos de alegria. “Um final de semana em que eu possa cozinhar pra todo mundo e ver todo mundo faceiro em volta da mesa, isso é o que me dá satisfação na cozinha”, conta. Promover um ambiente “estilo casa de vó no domingo” é o que mais gosta de fazer. Mas até a comida chegar no prato e render sorrisos, muitos processos passam pelas suas mãos. Escolher os ingredientes, lavar, fatiar, temperar, cozinhar, empratar… entre todos eles, o seu favorito está na ponta da língua: servir e olhar a pessoa comendo, sem dúvidas.

Desde que descobriu o apreço pelo ofício, é a comida que vai inserindo Vítor nos espaços. Sete anos na gastronomia e muitas cozinhas depois, hoje trabalha na subsistência de uma só família. De segunda à sexta, o almoço, lanche da tarde e jantar de um casal e seus dois filhos passam pelas mãos de Vítor. Não é como se tivesse um restaurante para chamar de seu, pois é ele que vai ao encontro das pessoas. Uma viagem de 40 minutos de carro é o que o separa de seu ambiente de trabalho: uma mansão em um condomínio na Zona Sul de Porto Alegre. Trabalha sozinho em uma cozinha que não é exatamente sua, mas que só ganha vida sob seu comando. Como personal chef da casa, todas as funções de um restaurante se concentram em um só profissional. “Hoje em dia eu meio que sou o chef, né? A cozinha é minha e é isso”, relata.

À primeira vista, a aparência do cozinheiro pode enganar. Cara de porto-alegrense tem, mas seu visual não remete ao de um cozinheiro tradicional — pensando bem, existe tal coisa como estereótipo de cozinheiro? Enfim, Vítor tem estilo. É alto, esguio e tem o corte de cabelo e a barba em dia. Por mais que não sorria muito, é bem-humorado. Irônico, às vezes com humor ácido. Seu modo de vestir e suas tatuagens transparecem seu lado desenhista, que quase virou realidade profissional. Antes de literalmente botar a mão na massa por dinheiro, o diploma de designer era o objetivo. Vítor ficou bem perto de alcançar o canudo, até que uma viagem mudou o rumo de sua história.

Na mão direita, um desenho revela um dos pratos preferidos do cozinheiro. | Foto: arquivo pessoal/Vítor de Bem

Enquanto cursava Design na UFRGS, Vítor foi para a Austrália fazer um intercâmbio. Já no continente oceânico, precisava encontrar uma forma de fazer dinheiro. Foram algumas alternativas furadas, como quando tentou ser entregador de panfletos e desistiu dois dias depois. Até que viu numa loja de sanduíches uma forma de ficar mais perto dos dólares australianos. Começou fazendo sanduíches e montando saladas, e pegou gosto pela coisa. Depois, trabalhou no caixa do restaurante, cara a cara com os clientes estrangeiros. Teve que aprender o inglês na marra. “Da comercialidade do serviço eu gostei muito, de tratar com o cliente, de servir comida, de ter essa agilidade.” Surgia ali a vontade de trabalhar na correria da cozinha. Na verdade, essa foi a coisa que mais o motivou a fazer gastronomia. “Eu não quero ficar parado na frente do computador, eu não vou ficar parado na frente do computador”, enfatiza. Por mais antigo que seja o desejo, ele permanece vivo.

Quando voltou ao Brasil, o anseio pelo diploma de designer já tinha ficado para trás. A vivência na Austrália o fez perceber que era na cozinha onde ele queria estar. Sua trajetória acadêmica, então, mudou de rumo. Vítor trocou um cotidiano com desenhos geométricos, montagem de protótipos e tipografias para lidar com técnicas culinárias, confeitaria, panificação e explorar todo o tipo de cozinha, do hemisfério leste a oeste, de norte a sul. Sua vivência no curso de Gastronomia da Unisinos abriu muitas portas, inclusive, de grandes restaurantes.

De cozinhas renomadas com estrelas Michelin até aquelas fora do país, Vítor sentiu na pele o que é viver pelo prato. Durante seu estágio na França, enfrentou jornadas exaustivas que chegavam a 14 horas de trabalho. Em cozinhas que funcionavam como uma linha de produção, trabalhava o dia inteiro de pé olhando para a parede. “Na hora do serviço, eu picava, cozinhava e ao mesmo tempo ficava na fritadeira. Eu não tinha contato com outras pessoas, era muito tenso”, relembra. A perda das folgas aos sábados e domingos veio acompanhada de dores nas costas constantes: “meu melhor amigo era o Dorflex”.

Quando ainda trabalhava em restaurantes, Vítor passava o dia inteiro de pé. | Foto: arquivo pessoal/Vítor de Bem

O menino da guioza

- “Tu que é o menino das guiozas?”

Não foi uma, nem duas vezes que Vítor escutou isso numa festa. Foram várias vezes que o questionamento chegou até ele — “tudo que eu menos quero falar numa festa é sobre trabalho, mas tudo bem, acontece”, brinca. A guioza é uma espécie de pastel oriental com versão chinesa e japonesa. Pouco comercializada em Porto Alegre, mas muito produzida por Vítor. Inclusive, virou seu prato chefe. “Um dia perguntaram se eu vendia guioza, e eu pensei: por que não?”.

A ideia surgiu na pandemia, quando o cozinheiro passou a postar algumas receitas no Instagram. As pessoas começaram a se interessar, principalmente pelo prato asiático. Quando Vítor explica, a receita parece fácil. Uma massinha feita de farinha, água e sal recheada com porco, camarão ou cogumelos. Depois de levar temperos asiáticos, gengibre, cebolinha, shoyu, óleo de gergelim e pimenta, a massa é dobrada sete vezes, vai no vapor e pronto, está feita a guioza.

As vendas online deram tão certo que Vítor conquistou uma boa clientela, principalmente pela comercialização de marmitas. Essa foi sua fonte de renda durante dois anos de pandemia, período em que o setor gastronômico foi bastante afetado e a alternativa era cozinhar em casa. Por mais que tenha dado certo, o espírito empreendedor não condiz muito com sua personalidade. “Eu já decidi, eu não quero ser dono de nada, eu não quero ter esse pepino para minha vida. Eu quero ser mandado”, ele brinca, com um fundo de verdade.

Chef de uma cozinha só

— E tu não pensa em voltar para alguma cozinha de restaurante?

— Vontade eu tenho.

Faz dois anos que Vítor leva um trabalho solitário. Como personal chef, prepara a mesa para uma família inteira, mas come sozinho. Na verdade, a solidão o acompanha por toda a sua jornada de trabalho. A estabilidade financeira e a possibilidade de descanso nos finais de semana o levaram até esse formato laboral, em que a culinária tem apenas um comandante. Mas as trocas que acontecem numa cozinha fervorosa num sábado à noite não encontraram substituto à altura. “Eu ganhava muito menos, trabalhava muito mais, mas pelo menos eu tinha essa troca. Tu troca e tu cresce muito mais”, desabafa.

Por mais que sinta falta do ambiente, a hierarquia da cozinha nunca o agradou. Vítor já subiu na pirâmide passando de estagiário a auxiliar até chefe de praça. Mas para ele, cargos do tipo são indiferentes. Faz mais sentido o trabalho em equipe, quando todo mundo pega junto do início ao fim. Quando aquele que comanda não se importa de lavar a louça. Quando na cozinha há mais coletividade e menos verticalização. “Se eu tivesse uma cozinha, eu queria que fosse assim”, imagina. Por essas e outras que Vítor jamais será um chef, nem adere à denominação. Todo o poder e a gourmetização dos quais o cargo é acompanhado não combinam com ele. É que sua gastronomia com propósito não se encaixa nesses moldes. Por isso, na hora de chamar Vítor, o termo chef é renegado: “me chama de cozinheiro que tá ótimo”.

Como personal chef, Vítor é chef de uma cozinha só. | Foto: arquivo pessoal/Vítor de Bem

--

--

Ester Bertozzi
Cultura da Mesa

Produtora da TV Band RS, jornalista em formação pela UFRGS