Crônicas

Chocolate quente de colher

Ana Julia Zanotto
Cultura da Mesa
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3 min readAug 29, 2023

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“Mas não foi o chocolate quente que me fez voltar tantas vezes” | Crédito: Tania Peruzzo

Em 2021, eu perdi a minha cafeteria. Não, eu nunca trabalhei em uma cafeteria, e muito menos fui dona de uma. Mas, ainda assim, há dois anos eu perdi a minha cafeteria. O número 84 da avenida Fernando Luzzatto, em Nova Prata, que hoje abriga uma farmácia, já foi muito mais que isso — aqui não tenho pretensão de menosprezar o novo empreendimento, mas farmácias temos por todos os cantos, já aquela cafeteria era única.

Por 34 anos, o Espaço Prisma foi uma locadora de filmes, que ganhou um espaço para café nos seus últimos cinco anos de existência. O costume de ir até lá para alugar um filme virou a tradição de passar tardes acompanhada de uma bebida quente e um pão de queijo.

Na época eu não tomava café. Não gostava da bebida amarga, principalmente porque não via sentido em pedir um expresso, quando podia tomar uma taça do chocolate quente mais cremoso da região. Para não dizer que estou exagerando, junto da bebida vinha uma colher, para caso achássemos muito complexo o trabalho de tomar pelo canudo.

Verão ou inverno, era possível me encontrar sentada em uma mesa ao canto, sempre olhando para o lado de fora, acompanhada do meu chocolate quente. Doce na medida certa, aquela bebida me confortou em muitos momentos. Foi o acompanhamento certeiro para fofocas intensas feitas por adolescentes de 15 anos e foi o incentivo necessário para que seis páginas de um discurso de formatura de terceiro ano fossem escritas.

Devo soar exagerada ao falar tanto de uma única bebida. E talvez eu realmente seja. Não sei se o chocolate quente era o melhor da região, de fato. Eu não tomei todos que existem em Nova Prata, quem dirá da região. Posso experimentar outros vários, mas esse ainda vai ser o melhor. Essa bebida foi o fator comum de momentos felizes e trágicos da minha vida. Com a colher em mãos e a taça na minha frente, celebrei quando passei no vestibular, chorei quando perdi a final do campeonato de xadrez da minha escola e vivenciei pela primeira vez o luto da perda de um familiar.

Mas não foi o chocolate quente que me fez voltar tantas vezes. Foi a mesa do canto com visão para a rua, foram as luzes improvisadas em potes de flor pendendo do teto, foram as prateleiras de filmes antigos que eu alugava quando era criança, foi a atendente que me chamava de aninha e sempre queria saber como eu estava ou o que eu queria fazer no futuro.

Hoje, nem mais moro em Nova Prata, mas sinto falta daquele espaço toda vez que volto para visitar os meus pais. Outros cafés foram abrindo na cidade, mas nenhum que tivesse aquela mesa do canto, as luzes pendentes e os filmes dos anos 2000. Nenhum que me fizesse querer voltar para escrever seis páginas de alguma coisa qualquer ou fofocar por horas com amigas — hoje, com 21 anos. Nenhum com uma atendente que quer saber dos meus sonhos e, definitivamente, nenhum com um chocolate quente que se toma de colher.

“Foi a mesa do canto com visão para a rua, foram as luzes improvisadas em potes de flor pendendo do teto, foram as prateleiras de filmes antigos que eu alugava quando era criança” | Crédito: Tania Peruzzo

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Ana Julia Zanotto
Cultura da Mesa

Estudante de Jornalismo na UFRGS e estagiária do Núcleo de Conservação e Memória do Patrimônio Cultural do Palácio Piratini