Crônicas

Cinnamon Roll

Vanessa Aranovich
Cultura da Mesa
Published in
6 min readAug 28, 2023

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Cinnamon Roll | Foto: Dall-E 2

Nós íamos visitar uns parentes no interior de Santa Catarina. Demoram seis horas de carro de Porto Alegre até lá, então, como qualquer pessoa com necessidades fisiológicas, nossa família estacionou em frente àquele café colonial na beira da BR-101. Eu era criança da última vez que entrei lá e, na época, o lugar era bem famosinho, um espaço enorme com arquitetura enxaimel, cheio de roscas de polvilho e cucas alemãs. A casa ainda era grande, mas estava quase vazia. Os corredores impunham hiatos continentais entre as estantes e os potes de chimia tinham data de fabricação de nove meses atrás. Era claro que a utilidade atual do café era a mesma pela qual minha família entrou lá em primeira instância: servir de banheiro pros turistas.

Mas havia uma banquinha perto do caixa que chamava a atenção. Era um desses estandes de comida de shopping (não existe outra maneira de descrever) com design amarelo clean, cujo mascote era um macaquinho semelhante ao George o Curioso. No início, ignorei a barraquinha, mas aí meu primo avisou que eles vendiam cinnamon rolls e a coisa mudou de figura. Como a maioria dos brasileiros raiz, eu nunca provei um cinnamon roll. Era uma dessas comidas que a gente vê nos filmes estadunidenses, tipo Starbucks ou KFC, e pensa: “nossa, deve ser bizarro viver num lugar onde esses paranauês são normais”. Até que um dia abre um Starbucks no shopping e uma fila quilométrica se forma na frente, porque todo mundo quer se sentir num filme, aí a gente paga uma fortuna por um café com gosto de terra.

Obviamente, eu precisava experimentar o maldito cinnamon roll. Pedi um tradicional, sem toppings. O atendente tinha uns 19 anos e pouco menos de 1,70m. Ele mordeu o lábio como quem tem uma notícia meio vergonhosa para contar.

– Putz… Eu acabei de vender o último dessa fornada. Mas já tem outra no forno, se não for chato esperar. Vai sair em uns dez ou quinze minutos.

– Tranquilo, eu espero.

Três anos depois, tento fechar os olhos para formar uma imagem do rosto do atendente do cinnamon roll, mas ele muda de forma à medida que imagino, o que me deixa frustrada, porque eu deveria lembrar. Tudo que sei é que ele era branco, magro e de cabelo preto, igual a esses adolescentes dos filmes de Halloween. O ar em volta dele vibrava naquela frequência que só as pessoas bissexuais emitem, então simpatizei instantaneamente.

Paguei em dinheiro. Ele abriu o caixa para pegar o troco, mas uma moeda caiu no chão. Ele se abaixou para juntá-la, mas bateu no balcão e todas outras moedas caíram junto. Segurei uma risada. Ele pediu desculpas. Respondi que tava tudo bem e ajudei a recolher as moedas. Quando ele devolveu o troco, percebi que suas unhas estavam pintadas com esmalte preto.

– Legal as unhas — comentei.

– Obrigado. Fui eu que fiz, semana passada.

– Semana passada? E ainda nem desbotou! As minhas eu pintei faz uns três dias e já tão pela metade. Não sei por que elas descascam tão rápido.

Falamos sobre a queda da qualidade dos esmaltes e opinei que era ridículo as pessoas pagarem para pintar as unhas, sendo que com o preço da manicure dá para comprar uns quatro ou cinco frascos. O menino do cinnamon roll respondeu que adorava o conceito de Faça-Você-Mesmo. Admitiu que o sonho dele era produzir as próprias roupas. Na verdade, ele tinha um ateliê de costura no porão de casa, mas tinha vergonha de usar essas roupas na rua.

Nos dez minutos pelos quais esperei o bolinho ficar pronto, o diálogo fluiu com uma naturalidade que não seria melhor calculada nem se fosse um roteiro do Tarantino. Os assuntos ficaram mais profundos e comecei a olhar direto nos olhos do menino do cinnamon roll, o que é raro, porque nunca ergo o rosto do chão. O interesse que eu tinha por ele não era romântico, muito menos físico. Era um tipo de interesse completamente diferente, como se eu falasse com o meu personagem favorito de um livro, uma pessoa que teoricamente não existe na vida real.

Em algum ponto, o menino do cinnamon roll revelou que era órfão. Não contou como os pais morreram, nem qual idade ele tinha na época. Só largou a informação no meio da frase, como se comentasse sobre o clima ou um projeto de lei do senado.

– Eu moro com a minha tia — ele explicou, com o tom de quem dormia no quartinho embaixo da escada na Rua dos Alfeneiros, número 4.

– Meu pai morreu de câncer ano passado — eu devolvi no automático.

Desviei o olhar. Eu não sei por que respondi daquele jeito. O normal era falar uma baboseira como “meus pêsames” ou “Deus os tenha”, mas eu sabia por experiência que o normal nunca funciona. Eu queria contar para o menino do cinnamon roll que eu entendia como ele se sentia, mas na verdade não entendo, porque eu tenho uma mãe presente e uma família enorme. Percebi que minha resposta soava como uma tentativa de diminuir a história dele, como numa competição pra ver quem sofre mais.

– Na verdade eu não conhecia muito bem o meu pai — emendei rapidamente. — Eu não via ele desde os três anos de idade.

Meu objetivo era esclarecer que a situação não era tão terrível assim por comparação, mas tive medo dele interpretar como se eu estivesse contando vantagem. Por sorte, ele compreendeu. Quando a gente perde os pais cedo, gosta de acrescentar a ideia assim, sem alerta de gatilho nem nada, às vezes com um toque de ironia, como se nem doesse mais, o que é mentira, porque dói pra caramba. É um tipo de sadomasoquismo, só para ver como os outros reagem. Não que sejamos maus, mas porque assim a pessoa prova um pouco do choque que nós sentimos. Se introduzirmos a questão delicadamente, todo mundo nos encara como se fossemos órfãos tristes e a coisa só desanda, porque dá um ódio quando te lançam um olhar de pena, de coitadinho. Não sei se fui eu ou ele quem comentou isso, mas é sincero.

Depois de dez minutos o cinnamon roll ficou pronto. Ouvi minha mãe gritar meu nome do outro lado da casa colonial pedindo ajuda com sei lá o quê. Ignorei da primeira e da segunda vez, mas então ela chamou de novo, mais alto. Bufei.

– Mães. Sabe como elas são.

– Não. Eu não sei.

Eu tive vontade de me esconder num buraco.

– Tá tudo bem — ele segurou uma risada. — Depois me conta se gostou.

Apontou para o bolinho. Eu me despedi e fui ajudar minha mãe. Depois, percebi que não perguntei o nome do garoto do cinnamon roll e saí meio andando, meio correndo, em direção ao estande. No balcão havia um homem alto de cabelos cacheados, colocando o avental do uniforme como se recém tivesse chegado.

– Por gentileza, tu pode me dizer o nome do guri que tava aqui mais cedo?

– Bah, putz, eu não faço ideia. Ele saiu daqui há uns quatro minutos. Troca de turno.

Foi a única vez que encontrei o menino do cinnamon roll. Viajei para Santa Catarina uma ou duas vezes depois disso e fiz questão de parar na casa colonial, mesmo sem vontade de ir ao banheiro, para ver se a gente se cruzava. Só faltava aparecer um corvo gritando: “Nunca mais! Nunca mais!”. Pior que ele nem esqueceu um sapatinho de cristal, para eu sair por aí procurando o dono.

Mais tarde, abriu um quiosque de cinnamon roll no shopping perto de casa. Experimentei ir lá para ver se o gosto me traria nostalgia, mas era só um pão com açúcar insosso, igual a todas as comidas de shopping.

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