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Dama da noite

Lucas Vidal
Cultura da Mesa
Published in
6 min readAug 29, 2023

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Aos 70 anos, Hortência Arabites é uma figura conhecida nas noites de Porto Alegre | Foto: Lucas Vidal

Um carro branco para em meio à avenida Osvaldo Aranha. De repente, uma cabeça surge para fora da janela do veículo. “Oi, faz um cachorro-quente pra mim?”, diz a mulher no banco do passageiro. Prontamente, Hortência se vira em direção aos ingredientes e começa o preparo do lanche. Em questão de minutos, junta pão com molho de tomate, duas salsichas, milho, ervilha, batata palha e queijo ralado — tudo pronto. A passageira desce do carro e segue em direção ao seu pedido.

– Esse é com duas salsichas? — questiona a cliente, retirando o celular do bolso para fazer o Pix.

– É sempre com duas.

– “Hortência Arabites”? — pergunta para confirmar os dados do pagamento.

– A própria.

Em frente às clássicas palmeiras da avenida Osvaldo Aranha, do auditório Araújo Vianna e do bar Ocidente, que movimenta o público boêmio na rua João Telles, Hortência Arabites plantou seu carro de cachorro-quente. Desde novembro de 2012, chama a atenção de quem cruza pela tradicional esquina de Porto Alegre. “Aqui eu tô bem na vitrine, todo mundo passa e vê”, disse ela. A rotina de trabalho é a mesma ao longo dos anos: vender cachorro-quente de quinta à sábado, das 18h da tarde às 6h da manhã. Seus clientes são motoristas de aplicativos, público de shows, pessoas entrando e saindo de festas, moradores do bairro e diversos grupos que transitam por lá.

Ariana do dia 8 de abril, Hortência tem cabelos vermelhos que combinam com o signo de fogo. No entanto, esconde seus fios ruivos. É comum encontrá-la com um chapéu preto na cabeça. Sempre gostou do acessório e à noite utiliza para se proteger do frio. “Tenho uma coleção de uns dez, mas uso esse que é menos escandaloso”, brinca ela. Veste lindas combinações de roupa, buscando combinar cada peça e evidenciando seu bom gosto. Com 70 anos, carrega vitalidade de sobra para aguentar a exaustiva jornada de trabalho. Apesar de sua pele revelar a passagem do tempo por meio das rugas e linhas de expressão, sua energia e disposição entram em desacordo com a aparência física.

Hortência faz parte da rua. Sempre à espreita, nunca é pega de surpresa quando alguém surge. Com frequência, ouve cumprimentos de diversas pessoas que passam pela avenida Osvaldo Aranha. “E aí, tia do rock!”, disse o garçom da Lancheria do Parque. Volta e meia um pedestre se aproxima para comprar seu lanche e papear. “Monta um daqueles bem completo pra mim, Dona Hortência?”, pediu o homem. Enquanto preparava a refeição, cerca de 20 ciclistas cruzaram a avenida. “E aí, vizinha!”, gritou um deles. Para ela, conversar e conhecer pessoas é o mais interessante em seu ofício. Ao longo das 12 horas de trabalho, tem tempo para falar com quem passa por lá. Numa dessas noites, um motoboy parou ao seu lado.

– E aí, meu amor! — cumprimentou ele.

– Oi! Como tu tá?

– Na correria, mas vamo indo — disse olhando para o fluxo de pessoas em direção ao auditório Araújo Vianna — Sabe quem tá tocando aí hoje?

– Maria Bethânia.

– Bah, ela é uma diva… Vou indo lá, Dona Hortência. Mais tarde eu passo aqui de novo pra comer um cachorro-quente e conversar com a senhora — disse o entregador, acelerando a moto e seguindo seu caminho. É a função da rua que a mantém em atividade. O barulho dos veículos, das festas e conversas paralelas a acompanha no passar das horas.

Viagem ao Ocidente

“Senta aí que vou te contar minha história”, disse ela. Num piscar de olhos, o ano é 2008. Após uma crise financeira, Hortência não pensou duas vezes: começaria a trabalhar. Durante seu casamento, sua função era cuidar da casa e do filho. Isso mudou a partir do momento em que a renda familiar ficou apertada. Então seguiu o mesmo caminho da irmã, que já tinha um carro para vender comida. No início, Hortência era itinerante. Sem ponto fixo, trabalhava sempre em lugares diferentes. No entanto, não se adaptou ao estilo de trabalho. Assim como a planta que leva seu nome, ela também precisava estabelecer suas raízes.

Passou a trabalhar na rua João Alfredo, no bairro Cidade Baixa. A região é conhecida pelo grande número de festas, bares e pessoas circulando. Na teoria, parecia um bom local para vender cachorro-quente. Porém, percebeu que o ambiente ficava mais hostil a cada noite. Então foi para a avenida Plínio Brasil Milano, no bairro Auxiliadora, com a intenção de encontrar lugares mais seguros — o que não aconteceu. Hortência descobriu que os frequentadores do novo local tinham relação com o tráfico de drogas. Numa noite de trabalho, um grupo de homens a abordou. “Tia, vai embora. Hoje vai ter um acerto”, disse um deles. Minutos depois, chegou outro grupo e os tiros começaram. Cerca de 20 disparos cruzaram a avenida. “Eu desci a rua, que era uma curva, e larguei tudo. Pernas pra que te quero! Fiquei atrás de um prédio até acalmar. Aí eu voltei, botei tudo dentro do carro e pensei: não piso mais aqui”, relembra ela.

Em novembro de 2012, Hortência passava pela avenida Osvaldo Aranha. Ao chegar no cruzamento com a rua João Telles, a esquina vazia chamou sua atenção. “Não tinha ninguém vendendo. Eu parei aqui na mesma hora, porque gosto de ser vista”, conta. Naquela época, não havia tantos estabelecimentos noturnos na clássica rua do bairro Bom Fim. Hortência viu ali uma boa oportunidade para seu negócio. Então estacionou seu carro, se dirigiu aos funcionários do bar Ocidente e perguntou se poderia vender cachorro-quente no local. “Se vocês não gostarem, me avisem que vou embora”, disse ela, que permanece lá há 11 anos.

Histórias de esquina

Apesar da idade, Hortência tem uma boa memória. Recorda-se com detalhes dos acontecimentos que presenciou naquela esquina. Passar 36 horas por semana no mesmo lugar torna ela uma testemunha ocular da história. Lembra da madrugada de sábado do incêndio na boate Kiss, em janeiro de 2013. Foi o primeiro verão trabalhando no novo local. O público do bar Ocidente começou a sair por volta das 2h da manhã. “Tia, lá em Santa Maria tá queimando uma casa e tá morrendo gente”, comentou o rapaz que parou para comer um cachorro-quente. Sem mais informações sobre a tragédia, Hortência seguiu até o amanhecer. “Às 6h, quando eu tava indo embora, começaram a descer aeronaves ali no campo. Só via o pessoal indo pro Pronto Socorro”, disse, apontando em direção à Pista de Atletismo da Redenção.

Também lembra do temporal de janeiro de 2016, um dos piores na história recente de Porto Alegre. Era 21h de sexta-feira quando a tempestade começou. Hortência guardou com pressa suas coisas dentro do carro e esperou a chuva passar. Relata que os veículos andavam na contramão na avenida Osvaldo Aranha, porque iam até o Túnel da Conceição, mas voltavam pois estava alagado. “Eu só via coisas voando por cima de mim. Roupa, cadeira, mesa, tudo das sacadas”, contou ela. Através dos vidros da camionete, via as palmeiras da avenida inclinando e as árvores da Redenção caindo. “Nunca rezei tanto quanto naquela noite”, relembrou ela.

Hortência ficou em casa durante o pior período da pandemia. O filho, que geria sua conta bancária, não queria que ela trabalhasse. Com as flexibilizações das medidas de segurança, em 2021, Hortência voltou — escondida — às ruas para vender cachorro-quente, contrariando a vontade do filho, mas ouvindo seu próprio desejo. Dessa vez, só aceitava dinheiro. Não podia deixar rastros de movimentação financeira. Por meses, burlou as condições impostas por seu filho. Numa noite, enquanto jantava com sua família em um restaurante, um cliente se aproximou de sua mesa.

– Oi, Dona Hortência! Essa é sua família? Que linda. Fiquem tranquilos que nós do Bom Fim estamos cuidando muito bem dela — disse o homem, que já estava de saída — Boa janta pra vocês!

A família entendeu o que estava acontecendo de quinta à sábado. O jantar seguiu em silêncio até o fim.

– Mãe, a senhora voltou a trabalhar? — perguntou seu filho.

– Sim, e não quero nenhum comentário.

Dona Hortência não gosta de mudanças. Além de seguir há 11 anos no mesmo lugar, os ingredientes do seu cachorro-quente são os mesmos: molho de tomate, duas salsichas, milho, ervilha, batata palha e queijo ralado. “Às vezes chega um grupo de cinco pessoas e cada um pede sem uma coisa. Eu faço tudo igual”, brinca ela. Em momentos de muita fila, não olha para trás enquanto monta os pães. Vira o corpo apenas para entregar a comida do cliente. “Pode conversar comigo se quiser, mas vou responder de costas”, diz. A intenção é não encarar a demanda de pessoas que se forma atrás dela, pois trabalha sozinha e precisa otimizar seu tempo. Pode parecer indelicada num primeiro momento, mas recebe todos com muito carinho e um sorriso no rosto. São essas pessoas que fazem ela feliz. E isso também não vai mudar.

Enquanto ela posava para a foto, um homem passou pela avenida. “Tá famosa, hein, tia!”, disse ele, seguindo seu caminho. Hortência sorriu.

– Assim eu passo a noite.

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Lucas Vidal
Cultura da Mesa

Estudante de Jornalismo na UFRGS. Fascinado pela rua e suas diferentes histórias. Também escrevo tweets. Gay. Ele/dele.