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De garçom a Peter Parker (e de novo a garçom)

Cadu Griebler
Cultura da Mesa
Published in
6 min readAug 29, 2023

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Léo em seu trabalho no Argeu’s | Foto: arquivo pessoal

Já foi vendedor de fruteira. Auxiliar de topografia. Estoquista. Dentre outras atuações, hoje é garçom aos finais de semana. E também é fotógrafo. E estudante de jornalismo. Conciliar carreiras já não é novidade para Leonardo — Léo, para os mais chegados. Pode parecer uma coleção um tanto quanto aleatória de experiências, mas 26 anos já foram o suficiente para aprender a equilibrar suas responsabilidades e perseguir seus sonhos. Isto é, ao final do mês, “a conta precisa fechar”. Aliás, sentado no bar onde Léo trabalha, posso afirmar: entrevistar um amigo é mais difícil do que pode parecer, em segundos nos desviamos completamente da conversa e os diálogos já começam a pairar sobre outras paixões e opiniões controversas que fogem do assunto deste perfil. Felizmente, sempre tem um cliente gritando “ô campeão” ou “ô chefia” para nos trazer de volta à realidade. E às histórias de quem vive servindo há quase dez anos.

Argeu’s, onde Léo trabalha, é vizinho de outro bar. E aqui já foi zona de guerra. Se normalmente é uma situação que pode causar discussões, os problemas afloram-se quando há uma rivalidade marcante em jogo — literalmente. A divisão territorial representava um confronto de paixões futebolísticas: de um lado, um bar temático do Internacional, e do outro, do Grêmio, casa do nosso garçom (e o primeiro colorado a assinar carteira no bar gremista, diga-se de passagem). Hoje, ambos os bares se renderam à nova onda de estabelecimentos gourmet e aposentaram a temática grenal em troca de uma marca sóbria e refinada. Entretanto, a tradição continua. Basta um olhar ao redor para perceber olhos vidrados em mais um lance de perigo na partida do colorado. Dos clientes, vidrados na grande tela que exibe a partida; do dono, que pragueja algum lamento inaudível; e de Léo que, com apenas um olhar em minha direção, relembra uma conversa anterior. É um “eu te disse” que mistura tristeza e vanglória quando o atacante do Inter desperdiça mais um gol.

A vida no bar

Léo é o tipo de pessoa que não teme novos desafios. Cada experiência contribuiu para moldar a pessoa que ele é hoje — é esse conjunto de vivências que sustenta uma jornada semanal pesada, onde concilia faculdade, estágio e o trabalho como garçom. Entre uma pausa e outra, nas pequenas folgas que tem dos corredores do Argeu’s, Léo compartilha algumas das histórias mais do que inusitadas que colecionou durante a década de serviço no local. Mas, antes de mais nada, em meio a toda a sua versatilidade e sorrisos genuínos, há um aspecto que Léo guarda com certo “ranço” — os clássicos apelidos que frequentemente surgem no universo dos garçons. “Ô campeão!”, “Ei, chefia!”, ou até mesmo um simpático “Meu rei!” — ele já ouviu de tudo quando se trata de apelidos enquanto trabalha no Argeu’s, mas não consegue deixar de esboçar um sorriso interno toda vez que um cliente tenta criar um vínculo camarada com um apelido improvisado. E é claro, ser chamado de “garçom” em um bar onde, bem, ele é um garçom, sempre arranca um riso contido. Mas ah, como ele adoraria um dia em que fosse chamado apenas de Léo, sem o título de “campeão” ou “chefia” a acompanhá-lo como uma trilha sonora irritante.

Com um sorriso, peço para ele me contar novamente do dia em que uma senhora chorou ao saber que ele havia vendido o frango assado que reservara a ela — lembrança que sempre é seguida da incredulidade e de uma boa dose de risadas. “Ela chorou pelo frango, mas no final, saiu com um sorriso depois de tudo que fizemos para resolver”, diz ele.

O Léo que cresceu cedo

Por trás da versatilidade profissional, a história de vida de Léo é uma teia de desafios que começa no extremo sul gaúcho. Nascido em Bagé, teve sua vida conduzida até Gravataí, região metropolitana de Porto Alegre com apenas cinco anos de idade — a família buscava novas oportunidades e reside ali até hoje. Essa mudança marcou o início de uma jornada que, apesar das dificuldades, foi impulsionada por sua mãe, um pilar de força em sua vida. Com a partida do pai, que voltou à Bagé para se dedicar inteiramente à sua “outra família”, Léo carrega consigo a responsabilidade desde cedo. Junto a seus irmãos, foi a união da família e a influência inspiradora de sua mãe que lhe ensinaram valores fundamentais que conquistam aqueles ao seu redor. Sua dedicação ao trabalho no Argeu’s vai além de servir mesas; é uma extensão daquilo que ele é como filho, namorado e amigo — e amplia sua determinação de equilibrar múltiplos papéis.

Alcançar todo esse equilíbrio é fruto de um aprendizado que começou na infância e adolescência, pois ao enfrentar o vazio deixado pela ausência paterna, Léo não só desenvolveu uma resiliência invejável, mas também a capacidade de formar conexões ainda mais fortes e profundas com o lugar em que está e com aqueles que o rodeiam. Seu comprometimento com o Argeu’s nos finais de semana, onde deixou a estabilidade da CLT há alguns anos, é uma das provas dessa lealdade. A rotina, cansativa, envolve percorrer quase 80 quilômetros em sua moto, diariamente, para chegar ao estágio e à faculdade — e ainda ter tempo para cuidar de dois gatos e um relacionamento. Essa determinação de equilibrar a jornada acadêmica, o estágio na Câmara Municipal de Porto Alegre e seu “bico” como garçom reflete uma dedicação profunda e um pequeno entendimento de todas essas facetas, que por mais distintas que possam parecer, ainda se entrelaçam para formá-lo como pessoa.

De muitas histórias, de muitos amores

Aqueles próximos de Léo têm um arsenal de histórias que pintam um quadro vívido de um amigo com pouca idade, mas muito para contar. Todos concordam, entretanto, em uma questão: Léo é uma pessoa sensacional, com uma história de vida intrigante e uma série de relatos absurdos na manga. Se você acha que cortar cebolas é uma tarefa monótona, ele é conhecido por desafiar as leis da física na hora de cozinhar. E então tem aquela vez que virou o herói das histórias em quadrinhos que lê e correu atrás do assaltante para recuperar seu celular (com a ajuda de um ciclista maluco que empunhava um facão, é claro). A rivalidade grenal também faz parte, pois uma simples visita do colorado ao estádio do Grêmio para um trabalho da faculdade se tornou alvo de muitas piadas e provocações. As histórias engraçadas não param por aí: o cara que come salada na churrascaria, que levou o professor para o bar, que trocou o jogo do Inter por uma ida ao motel… a lista é longa. Sorrio escrevendo isso, pois todas essas histórias dão forma a Léo e a quem eu vejo como amigo: um sujeito que vive a vida com autenticidade, rindo das reviravoltas e abraçando suas paixões. Alguns diriam que, poderes sobrenaturais à parte, “é o Peter Parker da vida real”.

Para além de sua vida profissional, existe um mundo paralelo que Léo cultiva com paixão, as histórias em quadrinhos. Nos momentos em que não está servindo mesas, tirando fotos ou entrevistando alguém para a faculdade, ele costuma mergulhar nestes universos fictícios, em que encontra refúgio e emoção nas narrativas envolventes dos “gibizinhos” — como brincam alguns de seus amigos. Na visão dele, no entanto, os quadrinhos são mais do que meros desenhos e balões de fala. Eles representam uma fuga bem-vinda, uma escapada para um mundo onde super-heróis e vilões ganham vida em cores vibrantes. O fascínio é tanto que levou sua paixão pelas HQs um passo adiante, criando um perfil no Instagram para compartilhar seus gostos e recomendações.

Dessa forma, quando a rotina do dia a dia se torna uma maratona agitada, ele acaba encontrando um respiro nas páginas que o transportam para aventuras épicas e por que não debates profundos sobre o comportamento? Fato é: quando ele fecha a última página de um gibi, muitas vezes é deixado com uma sensação de admiração pelas histórias bem contadas e pelas reflexões que os “gibizinhos” evocam. Um pouco dessa paixão respinga na sua escolha profissional. A decisão por cursar jornalismo é mais um reflexo de sua coragem em seguir uma paixão que transcende as adversidades. Embora ciente dos desafios que o campo enfrenta, com uma desvalorização muitas vezes evidente, Léo optou por realizar um sonho antigo que acabou deixando de lado no início da vida adulta e finalmente abraçar essa carreira com a mesma determinação que coloca em suas outras empreitadas.

A cada garrafa vazia que Léo recolhe e a cada pedido que ele entrega, ele está escrevendo um capítulo de sua própria história. Seus olhos brilham quando ele fala sobre a próxima técnica de fotografia que quer aprender ou a próxima reportagem que quer escrever. Na mente aterefada, seus pensamentos já estão no reinício da rotina na próxima segunda. E, observando-o trabalhar, é evidente que cada prato que ele serve, cada história que ele compartilha e cada clique de sua câmera são partes essenciais de uma narrativa em constante evolução — a narrativa que é a vida de Leonardo Lopes de Freitas.

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