PERFIS

De uma família para outra

Caroline Guarnieri
Cultura da Mesa
Published in
7 min readAug 29, 2023

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Daniela Arenzon, 49, administra a sorveteria Cronks | Foto: Caroline Guarnieri

Quase toda vez que Daniela Arenzon Vischnevetzki explica algo sobre si mesma, ela o faz em relação à sorveteria. Afinal, ela foi sua companhia mais próxima nesses 49 anos de vida. Dani fala que administra o negócio, mas nunca esquece de pontuar que quem o criou foi o seu pai, Bernardo. Ela usa as próprias memórias de infância para descrever o espaço ao seu redor. Ela lembra de quando tinha nove anos e ajudava a servir bolas de sorvete em casquinhas crocantes, ou quando era adolescente e se revezava com os dois irmãos mais velhos na caixa registradora.

“Tu perdeu o meu pai, ele recém tinha ido embora quando tu chegou”, lamenta a nutricionista de olhos castanhos e cabelo curto. Ela vestia roupas leves e confortáveis, mesmo na instabilidade térmica do inverno gaúcho. O cabelo preso em um rabo de cavalo, protegido pela redinha branca, combinava com o avental preto com o logo da loja. Não era difícil imaginá-la camuflada ali, de tão natural que era a sua presença.

A sorveteria Cronks, parada obrigatória nas tardes ensolaradas do bairro Bom Fim, foi criada em 1986 pelo casal Bernardo e Sara Arenzon. Daniela não deixa de citar o pai, era quase como se aquele espaço fosse uma extensão do seu Bernardo, e ela pertencesse a isso da mesma forma que os potes coloridos, a bancada de caldas, os menus pendurados na parede e as mesas rodeadas de cadeiras amarelas. Eu não cheguei a conhecê-lo, mas ela fez questão de explicar cada detalhe da história. “Na verdade, o sonho do meu pai era ter uma fábrica de pirulitos”, confessa. “Para ele, era o símbolo de uma infância feliz”.

A ideia tomou forma, e trocou de foco, quando a família comprou a loja, que antes pertencia a uma mercearia. O pai, natural de Erechim, e a mãe, de Porto Alegre, criaram os filhos no interior do Paraná. A vontade de voltar à capital gaúcha acompanhou o sonho de criar um negócio que resgatasse a infância. O prédio da sorveteria carrega a história de gerações que habitavam o Bom Fim desde a época em que a maioria dos negócios do bairro era de origem judaica. A tradição aparece, inclusive, nos produtos vendidos para além do sorvete. O balcão de comidas quentes, uma tentativa de sobreviver à queda de faturamento no inverno, armazena falafel, shawarma e húmus. Cafés, doces e salgados são vendidos o ano todo, e costumam ser o carro-chefe dos meses mais frios.

“Toda sexta-feira, nós oferecemos alguns produtos frescos”, conta Dani. A virada da sexta para o sábado, ou shabat, é o período da semana considerado sagrado para os judeus; as famílias jantam juntas e descansam. Um dos artigos mais vendidos nesse dia é o chalá, um pão redondo trançado a partir de seis tiras de massa. A porta entreaberta da sorveteria convida os clientes mais experientes a pegar os primeiros exemplares recém saídos do forno, ainda antes das 11h da manhã. O cheiro do doce quentinho contamina quem passa pelo cruzamento da Felipe Camarão com a Bento Figueiredo.

Os clientes também contribuem para o clima familiar. Na terceira vez que conversei com Daniela, o veranico chegou na forma de 31º em uma tarde de agosto, e a Cronks estava cheia. Adultos acompanhavam crianças pequenas demais para enxergar os sabores do balcão. Meia dúzia de amigos juntava mesas e sentava para reclamar das aulas, dos estágios e do que mais estivesse pesando nos seus corações. Um casal de idosos, ele com calça jeans e camisa social, e ela com uma bolsa de couro acompanhando sua blusa de cetim, andava com seus potinhos plásticos verde neon, recheados de mais sobremesa do que seus médicos provavelmente recomendariam naquela idade. Eles pesaram e pagaram juntos, como deviam estar acostumados a fazer há décadas. Para Daniela, a sua segunda casa também é uma espécie de lar para muita gente.

A Cronks já faz parte da paisagem do Bom Fim | Foto: Caroline Guarnieri

Uma doce história

Em 1997, Daniela, ainda na universidade, conheceu um jovem israelense, primo do seu vizinho de prédio, que estava ficando com a parte gaúcha da família. Igal Vischnevetzki não falava português, e o hebraico de Dani era um pouco arranhado, fruto do intercâmbio de um ano que fez para Israel quando se formou no ensino médio e de uma vida inteira de aulas no Colégio Israelita. O interesse um pelo outro surgiu e cresceu quase que instantaneamente.

Por alguns meses, cada um em sua terra natal, os dois mandaram cartas atravessarem o Atlântico carregando seus sentimentos. O gesto de carinho, porém, continha uma terceira pessoa: o pai de Igal. “Era a única maneira que a gente tinha de poder se comunicar”, lembra Dani. Durante quase um ano, o futuro sogro, brasileiro, traduzia tudo que ela escrevia para o hebraico antes de entregar para o filho. Depois, passava a resposta dele para o português.

Como uma engraçada e curiosa coincidência, parece que Dani e a sorveteria têm os mesmos instintos. A capacidade que uma tem de se adaptar também é vista na outra, e vice-versa. Logo depois de formada, no ano seguinte, Dani decidiu arriscar. Comprou uma passagem só de ida para Israel e foi, mesmo com medo, ao encontro da sua maior dúvida. “Ele podia ser o amor da minha vida, o pai dos meus filhos, eu não podia deixar de dar uma chance”, confessa. Os seis meses que eles passaram juntos foi o suficiente para terem certeza.

De volta ao Brasil, ela esperou cerca 90 dias pelo retorno de Igal – dessa vez, para ficar. Eles criaram um café em frente à Cronks, um precursor dos produtos que encontramos hoje na entrada da loja. Aos poucos, o tradicional negócio dos pais foi se tornando seu também. O casamento veio em 1999, e o filho, Guilherme, em 2004. A sorveteria cresceu, mantendo a fábrica própria com receitas originais guardadas a sete chaves.

Dani resolveu compartilhar comigo um pouco do passo a passo necessário para transformar leite, água, açúcar e gordura em delícias geladas com dezenas de sabores diferentes. A máquina pasteurizadora, ainda a mesma desde 1986, consegue fazer 100 litros de calda por vez. As duas máquinas produtoras são responsáveis por saborizar cada linha de sorvete com o acréscimo de frutas frescas, sucos, geléias, cacau, pedaços de chocolate e qualquer outro topping que pudermos imaginar. O processo é lento e detalhado, e a câmara fria armazena os excedentes.

Daniela trabalha no atendimento e na parte administrativa, enquanto o marido supervisiona a produção | Foto: Caroline Guarnieri

Interações de família

Espero que não seja mais segredo para você, leitor, de que a Cronks é um espaço familiar. E isso se deve, justamente, à família que a habita. Daniela Arenzon Vischnevetzki trata cada freguês como amigo íntimo, alguns até com seus rituais próprios.

Uma das clientes mais assíduas da sorveteria é, curiosamente, uma cachorra. Diariamente seu tutor faz uma parada na caminhada da dupla para roubar algumas bolachinhas da tia Dani. As suas favoritas são as de matzá, farinha judaica feita sem fermento para ser consumida durante a pessach, ou festa do perdão. Ela se dirige com firmeza ao animal:

— É pra comer tudo, viu? Sem deixar migalhas pra trás.

Quando duas amigas se despedem dela para ir embora, depois de horas de conversa, Dani faz questão de se incluir no bate-papo. Com um sorriso quase que malicioso, como quem tivesse feito uma promessa de mindinho para guardar as mais profundas verdades das amigas, ela grita, clamando por uma atualização da fofoca:

— Não esquece de me contar depois!

No fim da tarde, não é raro ver famílias voltando com as crianças da escola e parando para uma pequena recompensa gelada. Quando duas meninas, entre seis e oito anos, entram pulando e gritando de animação – “Anita, a gente vai tomar sorvete!”, brada a que está vestida toda de preto antes de encher seu potinho de calda de chocolate – é Dani quem pergunta aos pais como estão e como vai a escola. É ela quem pesa a casquinha recheada de bolas de sorvete de danoninho e tubetes de waffer da pequena Anita.

Crianças de diferentes idades se aventuram nos sabores e toppings da loja | Foto: Caroline Guarnieri

“A gente sempre quis incluir todo mundo”, explica a nutricionista ao mostrar os sabores diets e veganos atrás do balcão. “A nossa ideia é que a sorveteria seja um programa familiar”. E é mesmo. Naquele dia do veranico de agosto, em que o calor intimidou a frente fria e trouxe um público maior ainda ao número 611 da rua Felipe Camarão, quando o sol já havia dado trégua e a vista do bairro se adaptava às luzes da noite, a Cronks se preparava para encerrar mais um turno.

As mesas brancas de plástico na rua, aquelas que parecem de bar e se encaixam perfeitamente com qualquer confraternização, estavam ocupadas pelas famílias das duas crianças. Pais, avós e até um bebê enchiam de risadas aquela pontinha da rua. Anita brincava com sua amiga vestida de Wandinha na calçada, como Daniela fazia nos anos de 1980. A casa da família Arenzon é um desses lugares que parece uma máquina do tempo, que mostra que o afeto atravessa gerações e as memórias podem ser criadas a partir dos mais simples sabores. Só a uma colherada de distância, de uma família para outra.

Fotos: Caroline Guarnieri

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Caroline Guarnieri
Cultura da Mesa

Estudante de Jornalismo da UFRGS e Assistente de Conteúdo em GZH. Com textos em Correio do Povo, revistas Claudia e Crescer, Matinal, Intercept Brasil e Yahoo.