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Dona Neusa

João Pedro
Cultura da Mesa
Published in
5 min readAug 29, 2023

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Dona Neusa, 69, trabalha com comida há mais de trinta anos | Foto: João Pedro Bernardes

Domingo, quase oito da noite:

– Vó, lembrei que eu tenho que tirar uma foto tua!

E lá foi Dona Neusa para a cozinha. Colocou uma touca, um avental e daquele jeito meio desconfiado-mas-prestativo, posou para a câmera do celular.

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Domingo, dez e meia da manhã.

Como já havíamos combinado na noite anterior, ligo o gravador do celular e começamos a conversar sobre as coisas pelas quais ela já passou em 69 anos de vida. Ela dobrando as roupas, eu guardando a louça.

Dona Neusa e eu nos entendemos bem. Coisa do convívio diário há mais de 20 anos, quando passei a morar com ela. Ainda assim, não é tarefa fácil escrever sobre essa senhora de cabelo vermelho e personalidade marcante.

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O dia de Dona Neusa começa por volta das sete da manhã. Logo que acorda já vai passar o café — se não tomar, fica com dor de cabeça. Coloca a ração para os cachorros, lava a louça, põe roupa na máquina e responde as mensagens da família.

No domingo em que conversamos, o preparo do almoço começou ainda antes das dez, limpando camarão. O crustáceo seria parte de um molho para peixe, que no cardápio acompanharia os tradicionais arroz e maionese de todo domingo.

– Eu adoro fazer “comida de sal”. Graças a Deus o que eu ponho a mão eu faço bem feito — ela diz, daquele jeitinho de quem se garante no que está fazendo.

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Neusa Ribeiro Lima nasceu em 18 de março de 1954 em Jaguari, a 400 km de Porto Alegre. É a penúltima dos oito filhos de Elvira e Laurentino. De família humilde, aos nove anos se viu obrigada a trabalhar na casa de uma professora da região. O acordo era que cuidasse da filha dela, acompanhando a menina — que, por sinal, era pouca coisa mais nova que a própria Neusa — na escola, mas terminou fazendo todo o serviço doméstico.

Com 11 anos, foi trazida para Porto Alegre para trabalhar na casa de uma outra família. A condição imposta por Dona Elvira era que a jovem Neusa a visitasse pelo menos uma vez por ano e fosse matriculada em uma escola da capital: ainda que estivesse a trabalho, deveria ser tratada como parte integrante da família. Mas a situação em que se encontrou era bem diferente:

– Tive trabalho praticamente escravo. Trabalhava das seis da manhã à meia-noite. Dormia muito pouco, porque não tinha muito tempo para descansar.

Neusa ficou na casa dessa família até os 16. A gota d’água foi quando se matriculou às escondidas em uma escola profissionalizante para retomar os estudos. A patroa descobriu e foi pessoalmente à instituição para cancelar a matrícula.

Foi lá que Neusa aprendeu a cozinhar.

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Em 1972, conheceu Antônio e logo se casaram. Neusa — agora Lima Gomes — deixou de trabalhar para outras famílias para então construir a sua. Com Antônio, teve três filhos: Leandro, Vinícius e Ana Laura.

Para ajudar no sustento da casa, Dona Neusa foi quase uma Barbie: foi secretária de um dentista, atendente em uma padaria e até abriu um pequeno bazar. Mas foi através da comida que ela se destacou.

No fim dos anos 80, percebendo que os bolos que comprava para os três filhos nunca a satisfaziam por completo, decidiu aprender as técnicas para fazê-los ela mesma. Inscreveu-se em um curso oferecido pelo Clube de Mães local. A ideia inicial era agradar os filhotes, mas o sucesso foi tanto que as próprias colegas de curso começaram a encomendar os bolos dela. O preço? Apenas os ingredientes necessários. Mas chegou um momento em que a quantidade de pedidos não compensava o dinheiro que ela ganhava; então, pela primeira vez, passou a cobrar pelo trabalho.

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Em 1994, se mudou para o endereço onde vive até hoje em Viamão. Na vila Gaúcha, encontrou nos vizinhos a amizade e uma clientela fiel. Entre os fregueses estava o Seu Rocha, dono do bar e armazém da esquina, e que foi responsável pela encomenda mais desafiadora de sua carreira: o bolo de casamento da sua filha.

O ano era 1999. Para encarar o desafio, se inscreveu em um curso de bolos artísticos da Casa do Padeiro, na avenida Assis Brasil. Todo o conhecimento que adquiriu foi colocado à prova na confecção deste bolo imenso — que na verdade eram quatro: um principal, que ficaria na mesa dos noivos, e outros três um pouco menores.

Pega os ingredientes, mistura a massa, põe na forma, coloca no forno, desenforma. Pega os ingredientes, mistura a massa, põe na forma, coloca no forno, desenforma. O ritual se repetiu mais de 20 vezes naqueles três dias. De vez em quando, o ritual também incluía acalmar os ânimos entre a filha e a nora, que estavam lá para ajudar mas se desentendiam com frequência.

– Eu nunca mais quis pegar bolo do tamanho desse. Foi um caos. Saiu perfeito e tudo, mas deu muito trabalho e eu cobrei muito pouco.

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A década de 2000 foi de novos começos para Dona Neusa. Em 2001, nasceu o primeiro dos cinco netos. Em 2004, ganhou de presente de aniversário o tão sonhado reencontro com os familiares que não via há mais de 30 anos. E em 2007, realizou ao lado do filho Leandro o sonho de abrir um restaurante.

O ponto ficava em Alvorada, no mesmo terreno em que o primogênito morava. O nome, Poesia e Cia., não poderia ser mais propício: Leandro e a esposa, Janice, são ambos professores de português. Neusa conta que, durante o tempo em que trabalhou lá, era constantemente elogiada pelos clientes, que a chamavam até o salão para cumprimentá-la.

Neusa trabalhou no restaurante por cerca de um ano. O cansaço do deslocamento foi decisivo na hora de parar:

– Eu ia de ônibus e voltava de ônibus. Naquela época não tinha Uber. Se estragava o ônibus, tinha que vir um taxista vir me buscar ou esperar um outro ônibus que viesse recolhendo as pessoas. Isso aí me cansou muito.

Dona Neusa não trabalha mais em restaurante, mas segue recebendo encomendas dos familiares e dos vizinhos. É comum ver aquele movimento frenético na cozinha de quem tem tantas coisas para fazer que não consegue parar para descansar. Perguntada se tem algum bolo que ela mais gosta de fazer, diz que “o bolo que vier, faz com muito carinho”, ainda que o de bombom e o de negrinho e branquinho sejam os que mais saem.

Às vezes, quando não tem encomendas, desata a fazer cucas e bolinhos de batata e sai pela vizinhança para vender. Nesta semana, mesmo com chuva, saiu na sexta-feira com seis sacolas e voltou apenas com um pacote de bolinhos — os quais foram prontamente aproveitados pelo neto.

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Segunda-feira, 7h50 da manhã.

Enquanto me atucano escrevendo este texto, Dona Neusa vem até meu quarto e diz que tem o encerramento perfeito:

– O meu maior prazer não é só o financeiro. É saber que as pessoas gostaram, que eu agradei o cliente. Quando eles vêm me elogiar e me agradecer. E sempre depois de cada festa vem uma pessoa ou duas encomendar bolo de mim porque gostaram do meu trabalho. O bolo de aniversário é a realização do sonho da pessoa.

E se ela me diz que esse é o encerramento perfeito, quem sou eu para discordar?

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