Perfis

Entre o Backofen e o baralho

Oberdan Schumann
Cultura da Mesa
Published in
6 min readAug 29, 2023

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Selvina e seu marido, Edgar, nos fundos de casa | Foto: arquivo pessoal

Quando os imigrantes alemães colonizaram a região que hoje conhecemos como Nova Petrópolis, em 1858, a sua culinária se baseava muito no “Backofen” — como é conhecido o forno à lenha em que produziam pão, bolos ou as tradicionais cucas. Caminhando pelo bairro Vila Olinda, é possível escutar o dialeto germânico Hunsrückisch dos habitantes mais velhos e avistar algumas típicas casas no estilo enxaimel. Mas nesta parte da pequena cidade, provavelmente o único Backofen que ainda funcione pertença à Selvina Schmidt. “Deve ter mais de cem anos, mas não faz mal, ele não cansa”, brinca a senhora, indicando-o nos fundos da sua moradia.

Perto do velho forno, laranjeiras, bergamoteiras, figueiras, goiabeiras e caquizeiros rodeiam o caminho que leva ao estábulo e ao galinheiro do local. Estes já receberam pelo menos o triplo da população atual: hoje há apenas duas vacas leiteiras, dois porcos e meia dúzia de galinhas. Não há mais ovelhas ou patos como outrora, nem mesmo os grandes bois que preenchiam a velha estrutura. “Não temos mais idade para cuidar de tanto bicho”, explica Selvina, de forma melancólica. Os cuidados diários são realmente desgastantes, mesmo com a quantidade diminuta de animais.

Apesar disso, Selvina tem a feição tranquila, e seu chapéu protege do frio os curtos cabelos acinzentados. Ela calça botas e usa um casaco velho do grupo de bolão do bairro — esporte muito comum no interior gaúcho, também trazido pelos imigrantes alemães, parecido com o boliche. Não estivesse discretamente mancando, já na beira dos 68 anos, parece com a mesma energia de quando a conheci, há quase duas décadas. Pequena produtora agrícola e dona de casa, nestes últimos dias o trabalho exigira o dobro do esforço, já que seu marido, Edgar, se recuperava de um quadro de pneumonia no hospital.

“Não jogamos mais”, referiu Selvina quanto à prática do bolão, mesmo que vestisse o tal casaco. Uma resposta que pode parecer um tanto óbvia devido às condições físicas, mas também evidencia que o esporte era uma paixão do casal — viajar pelas cidades para competir nos tantos torneios organizados pelo Rio Grande do Sul era uma programação constante nos finais de semana. E foi assim que se conheceram, há quase 50 anos, na Sociedade Tiro ao Alvo, no centro de Nova Petrópolis. Nos últimos anos, a senhora até ensinou o esporte voluntariamente às crianças da escola, perto de sua casa, mas as dores nas costas fizeram com que o médico diagnosticasse: sua carreira de bolonista precisava encerrar.

A vida no campo

Em uma velha estrutura ao lado, há fumaça. Ali estão penduradas muitas linguiças para o processo de defumação. “Ainda há algumas semanas matamos um porco”, disse a senhora, friamente. É uma cultura diferente — quem cresce longe da realidade do campo é, em sua maioria, incapaz de realizar um abate com as próprias mãos para o consumo próprio. Esse ritual não faz parte da cultura da cidade, que por sua vez encontra já embalada no mercado a carne produzida em massa a partir de animais de vida miserável, tratados apenas como mercadoria e trancafiados em pequenos cercados. Enfim, a hipocrisia.

Selvina tem isso como natural desde a infância. Começou a ajudar os pais na roça muito cedo. Ela nasceu em Feliz, município ainda menor, e teve tempo para aprender a ler, escrever e contar, mas não para concluir o 1° grau. Não se queixa disso, mas conseguiu proporcionar para a sua filha, Carla, um futuro longe do trabalho braçal do interior, mesmo que isso signifique que as próximas gerações não saberão assar cucas no Backofen.

Uma enorme árvore de noz-pecã praticamente divide o espaço de terra fértil do terreno. De um lado, a horta, sob os cuidados maiores de Selvina, que produz alimento para o próprio consumo. Há mandioca, couve, cenoura, alface, brócolis, cebolinha… uma variedade de cultivos produzida dentro de uma cerca completamente improvisada, que impede a invasão dos tatus que ali existem e adoram cavocar a plantação alheia. Do outro, uma faixa de terra muito maior produz apenas milho, que é vendido e significa grande parte da renda do casal.

Se é verdade que o médico proibiu o bolão devido às dores, não conseguiu fazer com que Selvina deixasse de trabalhar, mesmo que aposentada. Varrer as centenas de folhas secas que cobrem a grama do seu quintal, capinar a terra para o plantio ou trocar os cochos dos bichos são algumas das atividades que ela realiza incansavelmente. E de novo. E de novo.

Não se trata de uma questão simples: ela me diz que se sente bem fazendo tudo isso e mais as outras tantas tarefas diárias que envolvem cuidar da casa, dos animais e da lavoura. “Mente vazia, oficina do diabo”, diria o velho ditado, e essa parece ser a lógica dela quanto a parar de trabalhar. Ou seriam estas também as consequências de um sistema que não permite que pessoas descansem, mesmo após décadas de esforço?

A casa e a mesa

Entrar na casa dela nos dias frios causa um grande choque térmico. Não há lareira ou sequer aquecedor, mas sim um fogão à lenha sempre ativo no centro da cozinha. Tão antigo que Selvina não lembra há quanto tempo ele ocupa este lugar. Aquecer a residência é apenas um grande bônus, já que é nele onde a mulher faz grande parte do almoço e esquenta a água do chimarrão. Também é apreço dos gatos. Sempre foram os animais preferidos de Selvina, e não por acaso ela possui 14. Eles têm a liberdade para circular do lado de fora, mas três deles preferem ouriçar os pelos e sentar ao lado do calor do fogão.

Na cozinha, difícil parece ser encontrar alguma coisa que Selvina não saiba fazer. Aprendeu muita coisa com a mãe, como a comida tradicional do Kerb, festa tradicional alemã: carne de panela, batata cozida, massa caseira e chucrute. Semanalmente ela prepara feijão, galinhada, polenta, bolinhos de batata… e se preciso, assa o churrasco de domingo, como aprendeu na Sociedade Canto Amizade, do bairro em que mora.

E enquanto ela prepara a comida, escuta-se a música. Afinal, além de Edgar, Selvina possui outro fiel companheiro: o rádio. A estação mais ouvida é a Imperial, rádio da cidade que é sucesso em todo o interior gaúcho e até catarinense por seu repertório que envolve as bandinhas alemãs. Ela conta que acorda de manhã com o velho rádio relógio. “Às 6h levantamos com a música e já aproveitamos para ouvir as notas de falecimento”, conta a senhora, no que soou como um tom de brincadeira com leve fundo de verdade, já que a agricultora parece se preocupar com os velhos amigos e conhecidos que tem por toda a região.

A agricultora mudou de estação — gosta também de músicas da cultura gaúcha — antes de pegar o rolo de madeira e preparar o macarrão caseiro com suas mãos ressecadas. E lá estava Teixeirinha, por pura coincidência, cantando alguns de seus versos mais conhecidos:

“Queria ver-te mocinho moderno

Pegar no coice de um arado nove

E um machado pra cortar o cerno

E enfrentar doze horas de Sol

Num verão forte tu suava o terno

Tirar o leite e arrancar mandioca

No mês de julho no forte do inverno

Tuas mãozinha finas delicadas

Criava calo e virava um inferno”

O talento culinário da senhora tem como antítese a extensa e vazia mesa da cozinha, ocupada nestes dias apenas por ela e seu marido durante as refeições diárias. “Uma e outra vez que fazemos um almoço em família aqui”, descreve Selvina. Os anos que passaram parecem tê-la mal-acostumado — ao menos no almoço, a mesa sempre estivera cheia. Aos poucos, se esvaziou: suas sobrinhas foram para a faculdade; sua filha e o namorado, que moravam no andar superior, se casaram e se mudaram. Também recebiam visitas de amigos e familiares com mais frequência, mas a idade aparenta ter chegado para todos.

No entanto, na ponta da mesa há um baralho. E é por conta dele que a mesa ainda se preenche em algumas tardes, quando recebem os vizinhos para algumas partidas de canastra, como nos velhos tempos. Isso ocorre nos dias de chuva, quando não há muito o que fazer no campo. Nestas ocasiões, Selvina serve as bolachas amanteigadas, assadas no Backofen, claro, e um café bem forte, e assim passam a tarde jogando e brigando por um conjunto velho de cartas.

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